Poucos conheceram tão
bem a alma humana, quanto o Marquês de Sade (Paris 1740 – Saint-Maurice 1814). Para
alguns, o divino marquês, para outros, o maldito. Sua obra que na maior parte
das vezes é classificada como pornográfica, possui a crítica mais corrosiva a
otimista filosofia das luzes. Sendo ainda hoje proibida ou tolerada sob a
advertência de perigosa:
“A obra que estamos em vias de entregar ao público chocará, sem dúvida, aos leitores menos avisados. A crueza das cenas de deboche e a violência dos ataques a todos os princípios da moral consagrada abalam mesmo ao espírito mais habituado a leituras fortes. A depravada orgia da imaginação do famigerado marquês é tamanha que ninguém o superou até agora e sua obra é, ainda hoje, o melhor documento dos desvarios a que pode atingir a mente humana. Nada ele respeita. A religião, a moral, os costumes, os mais puros sentimentos de família, a amizade, os nobres impulsos do coração humanos são vilipendiados por este espírito doentio e degenerado”1.
Como adverte o prefácio de uma edição recente de sua obra A Filosofia na Alcova.
“A obra que estamos em vias de entregar ao público chocará, sem dúvida, aos leitores menos avisados. A crueza das cenas de deboche e a violência dos ataques a todos os princípios da moral consagrada abalam mesmo ao espírito mais habituado a leituras fortes. A depravada orgia da imaginação do famigerado marquês é tamanha que ninguém o superou até agora e sua obra é, ainda hoje, o melhor documento dos desvarios a que pode atingir a mente humana. Nada ele respeita. A religião, a moral, os costumes, os mais puros sentimentos de família, a amizade, os nobres impulsos do coração humanos são vilipendiados por este espírito doentio e degenerado”1.
Como adverte o prefácio de uma edição recente de sua obra A Filosofia na Alcova.
Entre dor, excrementos
e sodomia, Sade deixou nua a alma humana, de suas amarras e de seu falso
moralismo. E pôde ver o que há no fundo dos corações humanos.
Sem temer o castigo divino
ou o castigo dos homens, pôs em prática sua filosofia com uma coerência jamais
vista.
Todas as perversões lhe
eram familiar: desde as mais violentas, às mais sujas. Capaz de pagar
prostitutas para açoitá-lo e forçá-las ao sexo anal, enquanto este próprio
recebia em seu ânus o pênis de um criado. Ou penetrar-lhes por trás e forçá-las
a blasfemar o nome de Cristo.
Aos seus desejos, não
impunha limites: “tudo é bom quando é
excessivo”, “a primeira lei que a
natureza me impõe é gozar à custa seja de quem for”, estes eram os
fundamentos de sua filosofia.
De sua longa vida,
grande parte foi passada em manicômios ou em presídios. Entre loucos, pôs se a
encenar suas peças, tendo estes como atores e atrizes.
De seu nome originou-se
o termo sadismo. Palavra atribuída ao ato de obter prazer em infligir dor e
humilhações aos outros. Prazer tantas vezes experimentado por Sade. E a fonte
de uma de suas primeiras prisões, ao ser denunciado por uma prostituta de ter lhe
amarrado de bruços sobre uma cama, e lhe ter seguidas vezes surrado com chicote
e ferindo-a com vários cortes à faca, após a qual estancava o sangue com cera
derretida de vela.
O divino Marquês, na
verdade Donatien Alphonse François de Sade, o Conde de Sade, teve o grande
mérito e coragem de por às claras, seus fetiches e taras, contrastando com a
hipócrita sociedade em que vivia. Ao expor sua filosofia da alcova, mostrou o
lado sombrio da espécie humana. Lado este que, em maior ou menor grau, todos compartilhamos
um pouco.
Marquês de Sade: o sexo como filosofia
SUA FILOSOFIA
Nascido em solo
francês, em pleno iluminismo. Época em que as luzes da razão iluminam as trevas
do obscurantismo, irracionalismo e da ignorância. Sade partindo dos mesmos princípios
do iluminismo, termina por negá-lo.
Ao procurarem novas
bases para a moral, diferentemente da religião que lhes pareciam não apenas
superada, como falsa e contraditória - haja visto os excessos religiosos de seu
tempo, bem como os excessos dos reis e os históricos, como a inquisição - os
filósofos iluministas, inspirados pelas ciências de seu tempo, a substituíram
pela natureza. A qual todos os homens perante esta, são iguais. Mesmos os reis,
que pelas corruptas leis humanas se diferenciariam pelo poder e privilégios, a
esta se curvariam e teriam o mesmo fim que seus semelhantes. Portanto, como
fundamento de igualdade entre os homens, não haveria outro igual. O que gerou
uma crescente onda de ateísmo, já que pela primeira vez o homem estava
suficientemente maduro intelectualmente para encontrar por si próprio a
verdade, independente de qualquer revelação divina.
Se a natureza agora era
a base, seria de esperar que uma moral naturalista fosse adotada. Em que o
prazer fosse visto como algo natural e que a idéia de pecado fosse abandonada.
Esta nova moral daria mais felicidade e união aos homens, que finalmente livres
das amarras da religião gozariam melhor de sua razão, de seu destino e de suas
virtudes.
Sade, porém, não
pensava deste modo. Para ele, a natureza nos inspira crimes, e por isso, a
moral e a felicidade dos homens, seriam incompatíveis. Pois, como disse: “é a seus impulsos que o homem segue quando
se entrega ao homicídio; é a natureza que aconselha, e o homem que destrói seu
semelhante vale para a natureza o mesmo que a peste ou a fome, igualmente
enviadas por sua mão, a qual se serve de todos os meios possíveis para obter o
quanto antes essa matéria-prima de destruição, absolutamente essencial às suas
obras.
Dignemo-nos
a iluminar por um instante nossa alma com o fogo sagrado da filosofia: que
outra voz, que não a natureza, nos sugere os ódios pessoais, as vinganças, as
guerras, numa palavra, todos esses motivos para matanças perpétuas? Ora, se ela
no-los aconselha, é porque tem necessidade deles. Como, então, poderemos,
segundo isso, nos supor culpados para com ela, uma vez que só fazemos seguir
suas prescrições?”.
Ao elegerem a natureza
como fundamento, os iluministas não viram o que para Sade lhe pareceu claro: sendo
a natureza o verdadeiro fundamento, com que direito pode-se reprimir no homem o
seu lado destrutivo, natural? Com que direito deve-se reprimir aquele que só
sente prazer infligindo dor aos outros, se tal prazer é ditado pela própria natureza,
a qual, em verdade, está acima dos homens ? Ninguém teria esse direito.
Os instintos seriam a
verdadeira sabedoria, o prazer seu fim, praticá-lo seria sua ética. Ética esta
que estaria acima das meras convenções humanas de bem e mal, certo e errado.
Pois, “tudo está na razão de nossos
costumes e do clima que vivemos. O que aqui se chama crime será virtude mais
além; as virtudes dum outro hemisfério podem ser crimes aqui. Não há horror que
não possa ser divinizado, nem virtude que não possa ser impugnada. Dessas
diferenças puramente geográficas nasce o pouco caso que devemos fazer da estima
ou do desprezo dos homens, sentimentos ridículos e frívolos acima dos quais nos
devemos colocar. Prefiramos sem temor o desprezo dos homens, sobretudo quando
for motivado por aquilo que nos enche de volúpia ou prazer”.
Sade, certamente não
foi um “louco”, nem um blasfemo e libertino vazio, pois defendeu suas idéias
com toda coerência que um espírito racional poderia defendê-las, mas um
parafílico. E como a parafilia se caracteriza pela “tendência a buscar
habitualmente satisfação sexual em práticas diferentes das preferências da
maioria”2, em que o desejo sexual se concentra muito mais em objetos,
ou em atos indiretamente ligados ao sexo. Como no Fetichismo – em que a
excitação sexual se concentra em objetos inanimados, como tangas, cuecas, meias,
sapatos, botas, etc. Ou em partes específicas do corpo, não relacionadas
especificamente com o sexo, como pés, mãos, cabelos, etc. Ou a formas mais
extremas, como Apotenofilia (a obtenção do prazer decorre do desejo de ter uma
parte do corpo amputado), Coprofilia (excitação sexual motivada pela visão,
cheiro ou toque com excrementos humanos), Coprofagia (prazer sexual motivado
pelo contato oral com fezes humanas), Hipoxifilia (prazer obtido por privação
de oxigênio durante a relação sexual), Masoquismo (necessidade de ser submetido
a sofrimento físico ou psicológico, a fim de obter prazer sexual) e o próprio Sadismo,
assim como tantas outras.
BELONOFILIA: Prazer Sexual
Obtido Por Meio de Agulhas
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Sade pagou um preço
alto demais por seu comportamento libertino e parafílico. Pois, como disse: “Sim, sou um libertino, eu confesso, concebi
tudo o que é possível conceber nesta matéria; mas seguramente não fiz tudo o
que concebi e seguramente não o farei jamais. Sou um libertino, mas não um
criminoso nem um assassino”. Preço este dado por uma sociedade que, como em
todas as épocas, cultivava a superficialidade dos seres, e que ditava o que era
normal e permitido. Mesmo que o normal seja difícil, ou mesmo impossível de ser
definido. Não devendo ser confundido com os atos da maioria. Pois, “todas as
pessoas não são como você, nem como os seus amigos e vizinhos, inclusive, seus
amigos e vizinhos podem não ser tão semelhantes a você como você supõem”3.
Foi contra uma moral que
padroniza os indivíduos, que diferencia de modo absoluto o certo e o errado,
que tolhe e nega o que nos é demasiadamente humano, que Sade criticou e
ofendeu, com seus famosos excessos, em seus escritos. Uma moral que ao reprimir
os instintos vitais do homem acaba por intensificá-los e distorcê-los, pois,
como é sabido, o que é proibido é sempre mais procurado. Criando assim monstros
de uma cultura doentia e degenerada, como os maníacos serial killers ou
motivando o desejo de enfrentá-la, de quebrar as regras. Estimulando assim o
prazer da rebeldia, de transgredir suas regras. Originando, deste modo, atos
como os de vandalismo ou comportamentos sexuais autodestrutíveis, como os
praticados pelo movimento de homossexuais masculino denominado de Barebacke, em
que o prazer sexual está em transgredir normas de saúde, possibilitando assim a
transmissão e a infecção pelo vírus da AIDS. Relacionando-se com indivíduos
desconhecidos, principalmente com indivíduos já infectados pelo vírus da AIDS.
FISTING: Prazer Sexual Obtido Por Meio
Da Introdução Da Mão
Ou Do Antebraço Na Vagina Ou No Ânus.
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Convém, porém, lembrar
que o sadismo já existia muito antes que Sade pudesse existir. “Os rituais de
tortura eram minuciosos e ricos em suplícios e sempre existiam interessados em
acompanhá-los. Há relatos de pessoas que buscavam o orgasmo enquanto assistiam
às torturas dos carrascos nas praças de Paris.”4
O prazer e a dor, a
vida e a morte, sempre andaram juntas, tanto nas histórias individuais quanto
da humanidade: os antigos espetáculos de sangue, oferecidos ao divertimento
público de Roma, em que indivíduos eram mortos, torturados ou devorados por
leões. São agora substituídos por lutadores que, com seu sangue e golpes
certeiros, comprazem ao público. Ao mesmo público que, modernos e civilizados,
assistem com um prazer mórbido o resultado de um acidente de carro, em que
corpos estão mutilados.
E o que dizer das
crianças, estes seres ingênuos e inocentes? Exercitam seu sadismo com total
conhecimento. Se divertem a maltratar animais com toda a perícia de um algoz ou
ao maltratar seus colegas por serem diferentes. Pois, pudera! Crescem ouvindo
músicas tão sádicas quanto masoquistas, como em “atirei o pau no gato...”.
E as mulheres, estes
seres que inspiram poetas e são objetos de tantos desejos! Possuem uma história
triste de humilhações, dominações e violência desde a queda de adão, até hoje.
São objetos do sádico desejo dos homens. Inspirados, certamente, pelo forte
conteúdo sado-masoquistas das relações sexuais. Em que a atitude passiva
representaria a submissão absoluta ao sexo oposto. Conteúdo, comum e tão
fundamental nas relações de outros animais - como o louva-deus, que após o ato
sexual, o macho tem a cabeça devorada pela fêmea. São inspiradas, certamente
pela natureza a suportar a dor com doses benéficas de masoquismo. Já que seu
papel biológico na natureza está impregnado de dor: da menstruação, ao defloramento
e, conseqüentemente, ao parto. Ao que, Sade diria: “a natureza se compraz em nos fazer chegar à felicidade pelo caminho
doloroso, mas uma vez a dor vencida, nada mais deliciosa do que o prazer”.
Por outro lado, as
religiões, como formas de manifestações humanas, não poderiam estar de fora.
Possibilitam indefinidos modos de saciar nosso masoquismo. O Cristianismo, por
exemplo, com sua idéia de redimir os pecados, coloca na dor, o melhor modo. E a
capacidade de sentir dor sem reclamar, como uma de suas virtudes. O que,
seguramente, gera o prazer do alívio da passagem da consciência do pecado,
marcado por torturas psicológicas, para o bem-estar da não-culpa. Terminando,
enfim por associar prazer e dor, dor e salvação ou a total permissão de desejos
mórbidos, vistos como virtude. Como a de São João da Cruz (1542-1591), “que
certa vez qualificou como ‘agradável’ lamber úlceras de leprosos.”5
Ou ainda a do profeta Ezequiel, ordenado por Deus a comer fezes humanas: “E o
que comeres será como bolos de cevada, e cozê-los-ás sobre o esterco que sai do
homem, diante dos olhos deles.” Ezequiel 4:12. No entanto, ao protestar: “Ah!
Senhor Deus! Eis que a minha alma não foi contaminada, pois desde a minha
mocidade até agora, nunca comi daquilo que morrer de si mesmo, ou que é
despedaçado por feras; nem carne abominável entrou na minha boca.” Ezequiel
4:14. Ao que Deus respondeu: “Vê, dei-te esterco de vacas, em lugar de esterco
de homem; e sobre ele prepararás o teu pão.” Ezequiel 4:15.
Talvez o próprio
cristianismo não houvesse tido tanto sucesso, se não tivesse em sua história
tantos atrativos que aguçam nosso sadismo e masoquismo, como a idéia da
salvação pela dor que originou tantos atos de flagelo, como na inquisição.
Seja como for, tal é a
condição humana. E por mais que tais idéias nos pareçam sórdidas e atrozes, são
nossas, demasiadamente humanas. Pois, como seres da natureza, seguimos seus
impulsos. Impulsos esses que mesmo a moral e a religião não podem apagar,
embora os neguem. Mas que transparecem de uma forma ou de outra, em todas as
formas de manifestações humanas. De modo que camuflados sob os mais “virtuosos”
gestos, escondem-se nossos mais primitivos desejos.
O que motivou a Sade,
certamente a racionalizar suas tendências parafílicas, em uma obra de
excepcional coerência. Demonstrando a enorme influência de nossos instintos, desejos
e aversões sobre a razão ou de forma mais moderna, do inconsciente sobre o
consciente. O que, por outro lado, não diminuiu em nada sua obra, pois esta
continua a ser uma fonte de conhecimento já que o grande mérito de Sade foi de
mostrar esta faceta obscura da mente humana, que a cada dia se torna mais
clara: o homem é um ser autodestrutivo que obtém prazer com isso.
Por meio de guerras,
vícios, poluição, destruição da natureza, ou pelo puro egoísmo, exercemos nosso
sadismo, em mil formas de ardis. Formas perfeitas de destruição. Tão evoluídas
que a fabulosa arte da destruição adquiriu poder jamais visto: agora não só
podemos destruir povos inteiros, como a humanidade toda.
CRITICANDO SADE
É preciso ver no
sadismo de Sade, mais que simplesmente uma forma ingênua de aquecer o
relacionamento entre casais, como muitas vezes é tido. Mas uma sexualidade da
destruição. Em que o máximo prazer é obtido através do extremo sofrimento ou da
completa destruição do objeto do desejo. Sade baseia-se para tanto, como já foi
visto, na idéia de que o homem como animal é governado por seus impulsos.
Impulsos que são essencialmente destruidores e egoístas.
Se assim for, então,
nada poderá ser feito e a bondade é mera exceção doentia, pois a destruição é a
conclusão inevitável de nosso destino.
AMALA E KAMALA: Criança Indianas
Criadas Por Lobos
|
Contudo, o homem não
apenas é um fruto da natureza, como um produto de seu próprio meio. Como se
pode ver de modo claro e inequívoco, através dos casos surpreendentes de
crianças criadas por animais, ou mantidas em isolamento. Em que estas, devido
ao um longo período vivido em completo isolamento, não obtiveram as capacidades
humanas desenvolvidas, como linguagem, raciocínio, valores, sentimentos, etc,
mesmo após terem sido resgatadas. O que nos leva a pensar que a essência humana
é mais que simplesmente o resultado do efeito de uma “programação biológica”, “mas,
antes, resulta de todo um processo de interação entre as pessoas e a cultura.”6
O que nos leva também a percebermos a imensa influência que o meio exerce sobre
seus indivíduos, intensificando ou negando nossas capacidades. Como o próprio
Sade, testemunhou: “a prisão é um lugar
de maldade. A solidão que aqui impera dá poder a certas obsessões e o
transtorno que uma semelhante força produz torna-se mais rápido e inevitável”.
Prisão muito mais proporcionada por interesses políticos de seus inimigos, e
pela perseguição de sua sogra do que por suas aventuras libertinas. O que nos
leva, enfim a crermos que ainda há esperança.
FONTES:
1. ateus.net / e-book: A Filosofia na Alcova
2. Dicionário da Vida
Sexual / Volume 4 / Verbete: Parafilia
3. Havelock Ellis,
citado em www.psicologia.com.pt /
Artigo: Delitos Sexuais
4.Cadernos de Pesquisa
Interdisciplinar em Ciências Humanas: Barebacke: Roleta Russa ou a Ética Sadeana? –
Leandro Castro Oltramari
5. Dicionário da Vida
Sexual / Volume 2 / Verbete: Escatofagia
6. sobrenatural.org /
matéria: Feral children
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