segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

SADE, O FILÓSOFO MALDITO (por Bosco Silva)



Poucos conheceram tão bem a alma humana, quanto o Marquês de Sade (Paris 1740 – Saint-Maurice 1814). Para alguns, o divino marquês, para outros, o maldito. Sua obra que na maior parte das vezes é classificada como pornográfica, possui a crítica mais corrosiva a otimista filosofia das luzes. Sendo ainda hoje proibida ou tolerada sob a advertência de perigosa:

A obra que estamos em vias de entregar ao público chocará, sem dúvida, aos leitores menos avisados. A crueza das cenas de deboche e a violência dos ataques a todos os princípios da moral consagrada abalam mesmo ao espírito mais habituado a leituras fortes. A depravada orgia da imaginação do famigerado marquês é tamanha que ninguém o superou até agora e sua obra é, ainda hoje, o melhor documento dos desvarios a que pode atingir a mente humana. Nada ele respeita. A religião, a moral, os costumes, os mais puros sentimentos de família, a amizade, os nobres impulsos do coração humanos são vilipendiados por este espírito doentio e degenerado”1

Como adverte o prefácio de uma edição recente de sua obra A Filosofia na Alcova.
Entre dor, excrementos e sodomia, Sade deixou nua a alma humana, de suas amarras e de seu falso moralismo. E pôde ver o que há no fundo dos corações humanos.
Sem temer o castigo divino ou o castigo dos homens, pôs em prática sua filosofia com uma coerência jamais vista.
Todas as perversões lhe eram familiar: desde as mais violentas, às mais sujas. Capaz de pagar prostitutas para açoitá-lo e forçá-las ao sexo anal, enquanto este próprio recebia em seu ânus o pênis de um criado. Ou penetrar-lhes por trás e forçá-las a blasfemar o nome de Cristo.
Aos seus desejos, não impunha limites: “tudo é bom quando é excessivo”, “a primeira lei que a natureza me impõe é gozar à custa seja de quem for”, estes eram os fundamentos de sua filosofia.
De sua longa vida, grande parte foi passada em manicômios ou em presídios. Entre loucos, pôs se a encenar suas peças, tendo estes como atores e atrizes.


Foi na prisão que Sade escreveu um de seus primeiros livros: Os 120 Dias de Sodoma ou A Escola da Libertinagem, “a narrativa mais impura já escrita desde que o mundo existe”, em que quatro nobres – os maiores e mais experientes devassos da França - são levados juntos com seus súditos, entre crianças, jovens e velhos, para um castelo para experimentarem as mais extremas formas de prazer e de sexo. Em que o prazer convencional não tem lugar, mas apenas o violento, o nojento e o doloroso em seu mais alto grau. Em suas seiscentas formas de perversões, algumas descritas pela primeira vez, todos os pecados da Terra são praticados. 
De seu nome originou-se o termo sadismo. Palavra atribuída ao ato de obter prazer em infligir dor e humilhações aos outros. Prazer tantas vezes experimentado por Sade. E a fonte de uma de suas primeiras prisões, ao ser denunciado por uma prostituta de ter lhe amarrado de bruços sobre uma cama, e lhe ter seguidas vezes surrado com chicote e ferindo-a com vários cortes à faca, após a qual estancava o sangue com cera derretida de vela.
O divino Marquês, na verdade Donatien Alphonse François de Sade, o Conde de Sade, teve o grande mérito e coragem de por às claras, seus fetiches e taras, contrastando com a hipócrita sociedade em que vivia. Ao expor sua filosofia da alcova, mostrou o lado sombrio da espécie humana. Lado este que, em maior ou menor grau, todos compartilhamos um pouco.


Marquês de Sade: o sexo como filosofia

SUA FILOSOFIA

Nascido em solo francês, em pleno iluminismo. Época em que as luzes da razão iluminam as trevas do obscurantismo, irracionalismo e da ignorância. Sade partindo dos mesmos princípios do iluminismo, termina por negá-lo.
Ao procurarem novas bases para a moral, diferentemente da religião que lhes pareciam não apenas superada, como falsa e contraditória - haja visto os excessos religiosos de seu tempo, bem como os excessos dos reis e os históricos, como a inquisição - os filósofos iluministas, inspirados pelas ciências de seu tempo, a substituíram pela natureza. A qual todos os homens perante esta, são iguais. Mesmos os reis, que pelas corruptas leis humanas se diferenciariam pelo poder e privilégios, a esta se curvariam e teriam o mesmo fim que seus semelhantes. Portanto, como fundamento de igualdade entre os homens, não haveria outro igual. O que gerou uma crescente onda de ateísmo, já que pela primeira vez o homem estava suficientemente maduro intelectualmente para encontrar por si próprio a verdade, independente de qualquer revelação divina.
Se a natureza agora era a base, seria de esperar que uma moral naturalista fosse adotada. Em que o prazer fosse visto como algo natural e que a idéia de pecado fosse abandonada. Esta nova moral daria mais felicidade e união aos homens, que finalmente livres das amarras da religião gozariam melhor de sua razão, de seu destino e de suas virtudes.
Sade, porém, não pensava deste modo. Para ele, a natureza nos inspira crimes, e por isso, a moral e a felicidade dos homens, seriam incompatíveis. Pois, como disse: “é a seus impulsos que o homem segue quando se entrega ao homicídio; é a natureza que aconselha, e o homem que destrói seu semelhante vale para a natureza o mesmo que a peste ou a fome, igualmente enviadas por sua mão, a qual se serve de todos os meios possíveis para obter o quanto antes essa matéria-prima de destruição, absolutamente essencial às suas obras.
Dignemo-nos a iluminar por um instante nossa alma com o fogo sagrado da filosofia: que outra voz, que não a natureza, nos sugere os ódios pessoais, as vinganças, as guerras, numa palavra, todos esses motivos para matanças perpétuas? Ora, se ela no-los aconselha, é porque tem necessidade deles. Como, então, poderemos, segundo isso, nos supor culpados para com ela, uma vez que só fazemos seguir suas prescrições?”.
Ao elegerem a natureza como fundamento, os iluministas não viram o que para Sade lhe pareceu claro: sendo a natureza o verdadeiro fundamento, com que direito pode-se reprimir no homem o seu lado destrutivo, natural? Com que direito deve-se reprimir aquele que só sente prazer infligindo dor aos outros, se tal prazer é ditado pela própria natureza, a qual, em verdade, está acima dos homens ? Ninguém teria esse direito.
Os instintos seriam a verdadeira sabedoria, o prazer seu fim, praticá-lo seria sua ética. Ética esta que estaria acima das meras convenções humanas de bem e mal, certo e errado. Pois, “tudo está na razão de nossos costumes e do clima que vivemos. O que aqui se chama crime será virtude mais além; as virtudes dum outro hemisfério podem ser crimes aqui. Não há horror que não possa ser divinizado, nem virtude que não possa ser impugnada. Dessas diferenças puramente geográficas nasce o pouco caso que devemos fazer da estima ou do desprezo dos homens, sentimentos ridículos e frívolos acima dos quais nos devemos colocar. Prefiramos sem temor o desprezo dos homens, sobretudo quando for motivado por aquilo que nos enche de volúpia ou prazer”.

SADE E O SADISMO


COPROFAGIA

Sade, certamente não foi um “louco”, nem um blasfemo e libertino vazio, pois defendeu suas idéias com toda coerência que um espírito racional poderia defendê-las, mas um parafílico. E como a parafilia se caracteriza pela “tendência a buscar habitualmente satisfação sexual em práticas diferentes das preferências da maioria”2, em que o desejo sexual se concentra muito mais em objetos, ou em atos indiretamente ligados ao sexo. Como no Fetichismo – em que a excitação sexual se concentra em objetos inanimados, como tangas, cuecas, meias, sapatos, botas, etc. Ou em partes específicas do corpo, não relacionadas especificamente com o sexo, como pés, mãos, cabelos, etc. Ou a formas mais extremas, como Apotenofilia (a obtenção do prazer decorre do desejo de ter uma parte do corpo amputado), Coprofilia (excitação sexual motivada pela visão, cheiro ou toque com excrementos humanos), Coprofagia (prazer sexual motivado pelo contato oral com fezes humanas), Hipoxifilia (prazer obtido por privação de oxigênio durante a relação sexual), Masoquismo (necessidade de ser submetido a sofrimento físico ou psicológico, a fim de obter prazer sexual) e o próprio Sadismo, assim como tantas outras.


BELONOFILIA: Prazer Sexual 
Obtido Por Meio de Agulhas 

Sade pagou um preço alto demais por seu comportamento libertino e parafílico. Pois, como disse: “Sim, sou um libertino, eu confesso, concebi tudo o que é possível conceber nesta matéria; mas seguramente não fiz tudo o que concebi e seguramente não o farei jamais. Sou um libertino, mas não um criminoso nem um assassino”. Preço este dado por uma sociedade que, como em todas as épocas, cultivava a superficialidade dos seres, e que ditava o que era normal e permitido. Mesmo que o normal seja difícil, ou mesmo impossível de ser definido. Não devendo ser confundido com os atos da maioria. Pois, “todas as pessoas não são como você, nem como os seus amigos e vizinhos, inclusive, seus amigos e vizinhos podem não ser tão semelhantes a você como você supõem3.
Foi contra uma moral que padroniza os indivíduos, que diferencia de modo absoluto o certo e o errado, que tolhe e nega o que nos é demasiadamente humano, que Sade criticou e ofendeu, com seus famosos excessos, em seus escritos. Uma moral que ao reprimir os instintos vitais do homem acaba por intensificá-los e distorcê-los, pois, como é sabido, o que é proibido é sempre mais procurado. Criando assim monstros de uma cultura doentia e degenerada, como os maníacos serial killers ou motivando o desejo de enfrentá-la, de quebrar as regras. Estimulando assim o prazer da rebeldia, de transgredir suas regras. Originando, deste modo, atos como os de vandalismo ou comportamentos sexuais autodestrutíveis, como os praticados pelo movimento de homossexuais masculino denominado de Barebacke, em que o prazer sexual está em transgredir normas de saúde, possibilitando assim a transmissão e a infecção pelo vírus da AIDS. Relacionando-se com indivíduos desconhecidos, principalmente com indivíduos já infectados pelo vírus da AIDS.


FISTING: Prazer Sexual Obtido Por Meio 
Da Introdução Da Mão 
Ou Do Antebraço Na Vagina Ou No Ânus.
    
Convém, porém, lembrar que o sadismo já existia muito antes que Sade pudesse existir. “Os rituais de tortura eram minuciosos e ricos em suplícios e sempre existiam interessados em acompanhá-los. Há relatos de pessoas que buscavam o orgasmo enquanto assistiam às torturas dos carrascos nas praças de Paris.”4
O prazer e a dor, a vida e a morte, sempre andaram juntas, tanto nas histórias individuais quanto da humanidade: os antigos espetáculos de sangue, oferecidos ao divertimento público de Roma, em que indivíduos eram mortos, torturados ou devorados por leões. São agora substituídos por lutadores que, com seu sangue e golpes certeiros, comprazem ao público. Ao mesmo público que, modernos e civilizados, assistem com um prazer mórbido o resultado de um acidente de carro, em que corpos estão mutilados.
E o que dizer das crianças, estes seres ingênuos e inocentes? Exercitam seu sadismo com total conhecimento. Se divertem a maltratar animais com toda a perícia de um algoz ou ao maltratar seus colegas por serem diferentes. Pois, pudera! Crescem ouvindo músicas tão sádicas quanto masoquistas, como em “atirei o pau no gato...”.
E as mulheres, estes seres que inspiram poetas e são objetos de tantos desejos! Possuem uma história triste de humilhações, dominações e violência desde a queda de adão, até hoje. São objetos do sádico desejo dos homens. Inspirados, certamente, pelo forte conteúdo sado-masoquistas das relações sexuais. Em que a atitude passiva representaria a submissão absoluta ao sexo oposto. Conteúdo, comum e tão fundamental nas relações de outros animais - como o louva-deus, que após o ato sexual, o macho tem a cabeça devorada pela fêmea. São inspiradas, certamente pela natureza a suportar a dor com doses benéficas de masoquismo. Já que seu papel biológico na natureza está impregnado de dor: da menstruação, ao defloramento e, conseqüentemente, ao parto. Ao que, Sade diria: “a natureza se compraz em nos fazer chegar à felicidade pelo caminho doloroso, mas uma vez a dor vencida, nada mais deliciosa do que o prazer”.

Por outro lado, as religiões, como formas de manifestações humanas, não poderiam estar de fora. Possibilitam indefinidos modos de saciar nosso masoquismo. O Cristianismo, por exemplo, com sua idéia de redimir os pecados, coloca na dor, o melhor modo. E a capacidade de sentir dor sem reclamar, como uma de suas virtudes. O que, seguramente, gera o prazer do alívio da passagem da consciência do pecado, marcado por torturas psicológicas, para o bem-estar da não-culpa. Terminando, enfim por associar prazer e dor, dor e salvação ou a total permissão de desejos mórbidos, vistos como virtude. Como a de São João da Cruz (1542-1591), “que certa vez qualificou como ‘agradável’ lamber úlceras de leprosos.”5 Ou ainda a do profeta Ezequiel, ordenado por Deus a comer fezes humanas: “E o que comeres será como bolos de cevada, e cozê-los-ás sobre o esterco que sai do homem, diante dos olhos deles.” Ezequiel 4:12. No entanto, ao protestar: “Ah! Senhor Deus! Eis que a minha alma não foi contaminada, pois desde a minha mocidade até agora, nunca comi daquilo que morrer de si mesmo, ou que é despedaçado por feras; nem carne abominável entrou na minha boca.” Ezequiel 4:14. Ao que Deus respondeu: “Vê, dei-te esterco de vacas, em lugar de esterco de homem; e sobre ele prepararás o teu pão.” Ezequiel 4:15.
Talvez o próprio cristianismo não houvesse tido tanto sucesso, se não tivesse em sua história tantos atrativos que aguçam nosso sadismo e masoquismo, como a idéia da salvação pela dor que originou tantos atos de flagelo, como na inquisição.
Seja como for, tal é a condição humana. E por mais que tais idéias nos pareçam sórdidas e atrozes, são nossas, demasiadamente humanas. Pois, como seres da natureza, seguimos seus impulsos. Impulsos esses que mesmo a moral e a religião não podem apagar, embora os neguem. Mas que transparecem de uma forma ou de outra, em todas as formas de manifestações humanas. De modo que camuflados sob os mais “virtuosos” gestos, escondem-se nossos mais primitivos desejos.
O que motivou a Sade, certamente a racionalizar suas tendências parafílicas, em uma obra de excepcional coerência. Demonstrando a enorme influência de nossos instintos, desejos e aversões sobre a razão ou de forma mais moderna, do inconsciente sobre o consciente. O que, por outro lado, não diminuiu em nada sua obra, pois esta continua a ser uma fonte de conhecimento já que o grande mérito de Sade foi de mostrar esta faceta obscura da mente humana, que a cada dia se torna mais clara: o homem é um ser autodestrutivo que obtém prazer com isso.
Por meio de guerras, vícios, poluição, destruição da natureza, ou pelo puro egoísmo, exercemos nosso sadismo, em mil formas de ardis. Formas perfeitas de destruição. Tão evoluídas que a fabulosa arte da destruição adquiriu poder jamais visto: agora não só podemos destruir povos inteiros, como a humanidade toda.

CRITICANDO SADE

É preciso ver no sadismo de Sade, mais que simplesmente uma forma ingênua de aquecer o relacionamento entre casais, como muitas vezes é tido. Mas uma sexualidade da destruição. Em que o máximo prazer é obtido através do extremo sofrimento ou da completa destruição do objeto do desejo. Sade baseia-se para tanto, como já foi visto, na idéia de que o homem como animal é governado por seus impulsos. Impulsos que são essencialmente destruidores e egoístas.
Se assim for, então, nada poderá ser feito e a bondade é mera exceção doentia, pois a destruição é a conclusão inevitável de nosso destino.


AMALA E KAMALA: Criança Indianas 
Criadas Por Lobos

Contudo, o homem não apenas é um fruto da natureza, como um produto de seu próprio meio. Como se pode ver de modo claro e inequívoco, através dos casos surpreendentes de crianças criadas por animais, ou mantidas em isolamento. Em que estas, devido ao um longo período vivido em completo isolamento, não obtiveram as capacidades humanas desenvolvidas, como linguagem, raciocínio, valores, sentimentos, etc, mesmo após terem sido resgatadas. O que nos leva a pensar que a essência humana é mais que simplesmente o resultado do efeito de uma “programação biológica”, “mas, antes, resulta de todo um processo de interação entre as pessoas e a cultura.”6 O que nos leva também a percebermos a imensa influência que o meio exerce sobre seus indivíduos, intensificando ou negando nossas capacidades. Como o próprio Sade, testemunhou: “a prisão é um lugar de maldade. A solidão que aqui impera dá poder a certas obsessões e o transtorno que uma semelhante força produz torna-se mais rápido e inevitável”. Prisão muito mais proporcionada por interesses políticos de seus inimigos, e pela perseguição de sua sogra do que por suas aventuras libertinas. O que nos leva, enfim a crermos que ainda há esperança.

FONTES:

1. ateus.net / e-book:  A Filosofia na Alcova
2. Dicionário da Vida Sexual / Volume 4 / Verbete: Parafilia
3. Havelock Ellis, citado em www.psicologia.com.pt / Artigo: Delitos Sexuais
4.Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas: Barebacke: Roleta                                                                                   Russa ou a Ética Sadeana? – Leandro Castro Oltramari
5. Dicionário da Vida Sexual / Volume 2 / Verbete: Escatofagia
6. sobrenatural.org / matéria: Feral children
  

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