“E agora, amigo leitor, prepare seu coração e
sua mente para a narrativa mais impura já escrita desde que o mundo existe,
livro que não encontra paralelo entre os antigos ou entre os modernos.”
Assim
adverte o escritor, MARQUÊS DE SADE (1740 – 1814), a leitura de seu primeiro
livro, Os Cento e Vinte Dias de Sodoma, ou A Escola da Libertinagem, escrito em
1785. Podemos dizer que Sade não exagera em suas palavras, nem um pouco, pois
tal livro ainda hoje, passado mais de duzentos anos de sua feitura, não foi
ainda superado em ousadia sexual e violência. O livro, assim como grande parte
de sua obra, foi escrito durante uma de suas longas estadias na prisão, mais
exatamente na Bastilha, e é incompleto, pois foi separado de seu autor quando
este foi transferido para o hospício de Charenton; o que fez o marquês “chorar
lágrimas de sangue”, ao ver-se longe de sua criatura. O manuscrito foi
posteriormente encontrado, e somente na década de 1930, devido ao seu conteúdo
forte, foi publicado pela primeira vez, apenas para um pequeno círculo de
escritores e artistas, sendo liberado para publicação, bem como toda a obra de
Sade, somente na década de 1950, não sem antes passar por obstáculos jurídicos,
que em nome dos bons costumes, impediam a publicação das obras de Sade.
Eu
posso quase ver Sade, em meio aos gritos de dor e lamentações, provindo das
possíveis torturas feitas em outros prisioneiros, perdido em suas divagações em
busca de uma nova forma de tortura ou de assassinato que fugisse dos tão
conhecidos, e desgastados, métodos de seu tempo, já que, sem dúvida, uma dos
grandes atrativos de sua obra é a sua criatividade em tal área.
O
volumoso livro foi escrito em trinta e sete dias, sendo dedicado, por seu
autor, a ele doze horas por dia em sua feitura, possivelmente o tempo em que o
sol clareava sua cela. Tal obra foi escrita em um rolo de papel de vinte
metros, e às escondidas, já que as autoridades tinham a tarefa de vasculhar, e
destruir, qualquer escrito que por ventura pudessem achar de Sade. O livro narra os 120 dias no castelo de
Silling, para onde quatro nobres franceses (um padre, um financista, um juiz e
um nobre francês), acompanhados de 46 pessoas, entre velhos, jovens e crianças,
arrancados à força de suas casas, põem em prática, orientados por quatro das
mais experientes e devassas prostitutas da França, todas as formas de práticas
sexuais bizarras narradas por tais prostitutas, em um total de seiscentas
formas. A obra é dividida em quatro partes, cada parte contém 150 formas
diferentes de taras sexuais:
A PRIMEIRA PARTE é dedicada às paixões simples, que nada mais são que sexo envolvendo
pedofilia, secreções e excreções humanas, como urina e fezes; essa seção merece
uma ressalva, pois não há penetração, mas apenas contato com os elementos
citados acima;
A SEGUNDA PARTE, chamada de paixões duplas, além de novamente pedofilia, inclui
sexo com blasfêmia, incesto, masoquismo e sadismo; aliás, sadismo como já se
foi inúmera vezes comentado deriva do nome de Sade.
A TERCEIRA PARTE, denominada de paixões criminosas, se refere ao sexo anal, tanto
passivo quanto ativo, vale lembrar também que o sexo anal durante o século
XVIII era tido como crime, passível de prisão e mesmo de morte; também inclui,
além de todas as paixões precedentes, um grau maior de sadismo, como o prazer
de furar um olho, arrancar um dente, ou cortar os dedos do parceiro;
A QUARTA PARTE é dedicado as paixões assassinas, que como podemos deduzir inclui sexo em que
sua maior atração está na morte do parceiro, de várias formas e meios, mas sempre
de modo terrível e doloroso.
Por
isso, o livro choca. E chocar naqueles tempos não era tarefa fácil, pois seria
difícil chocar um público que já estava acostumado com os espetáculos das
sentenças de morte feitas por decapitação nas praças da Paris de então; assim
como aos nobres franceses que participavam das mais extremas orgias sexuais. E
se pararmos pra pensar, reconheceremos que chocará menos também, hoje, a um
grande público ávido por cenas de fetiches extremos e cenas de morte,
consumidas aos milhares, todos os dias, por meio da internet.
O
livro é apenas um esboço do que seria, e apenas a primeira parte está completa,
embora o autor inclua nela algumas observações, com relação a erros e a
mudanças do texto; as outras partes são apenas esboços do que seria.
O
universo dos 120 dias de Sodoma é tal que faz com que o mais violento dos
Serial Killers pareça um simples aprendiz quando comparado com os personagens
centrais de tal livro, cujas personalidades são descritas, detalhadamente, por
meio de qualidades desprezíveis de seus caráter. Podemos mesmo dizer, que Sade
antecipou a criação de vários personagens tão populares hoje em dia na
literatura e no cinema, como os Serial Killers, os anti-heróis da literatura
underground; e se pudermos comparar sua obra com o cinema, podemos também dizer
que Sade antecipou, em séculos, um subgênero do cinema de terror bastante
conhecido, chamado GORE, em que seu atrativo está nas cenas de tortura, com
muito sangue e tripas expostas, tendo como alguns bons exemplares as séries: O
ALBERGUE; JOGOS MORTAIS e o famoso filme CANIBAL HOLOCAUSTO.
E se compararmos
as cenas mais fortes de um filme recente, proibido em vários países (também no
Brasil teve sua exibição proibida e a cópia apreendida pela 1ª Vara da Infância
e da Juventude do Rio de Janeiro) por sua violência sexual, o filme sérvio
conhecido por A SERBIAN FILM, no Brasil chamado de TERROR SEM LIMITES, veremos
muita similaridades com os “Os 120 Dias de Sodoma” de Sade, como na cena em que
o personagem principal deve fazer sexo com uma mulher que sofreu abusos,
enquanto uma menina vestida de Alice assiste a tudo; em outra, um homem ajuda
uma mulher a dar à luz e estupra a recém-nascida; ou quando o protagonista é
levado a estuprar e degolar uma mulher algemada na cama e depois fazer sexo com
seu cadáver; sem esquecermos, claro, da cena em que o protagonista é drogado e
levado a estuprar sua esposa e seu filho. Estas, podemos dizer, são cenas que
foram concebidas por Sade já nos longínquos anos do século XVIII, com uma
brutal diferença, que ao contrário do protagonista do filme, os personagens de
Sade fazem tudo isso, e muito mais, por puro divertimento.
Acima, cena de A Serbian Film
E ainda há, na
introdução de seu livro, o convite de Sade convidando o leitor a participar
deste show de horrores, show que custará ao leitor algumas gotas de esperma,
como afirma ele:
“Muitas
extravagâncias aqui ilustradas merecerão sem dúvida o seu desagrado; sim estou
bem ciente disso. Mas há entre elas algumas que o aquecerão a ponto de lhe
custar algum sêmen, e isso, leitor, é tudo que lhe pedimos.”
O
livro de Sade teve uma adaptação para o cinema, em 1975, feita pelo polêmico
diretor italiano PIER PAOLO PASOLINE, Salò, ou os cento e vinte dias de Sodoma.
O filme prima mais para as bizarras cenas sexuais do que para as cenas
violentas do livro. A história é adaptada para a Itália durante o governo
fascista. E, como não poderia ser diferente, o filme ainda hoje choca. Uma das
cenas se tornou antológica, o banquete com fezes humana servida com toda a
pompa de um grande banquete.
Contudo,
diferentemente dos dias de hoje, o choque proporcionado pelo livro de Sade não
é à toa, ele obedece a uma filosofia rígida, por meio da qual Sade perscruta as
forças obscuras da mente humana, e que vê a influência dos instintos sexuais em
quase todas as relações humanas, conferindo a eles a importância devida com que
FREUD lhe garantiria mais de um século depois.
Porém,
depois de todos estes comentários preparatórios, resta-nos discorrer sobre o
livro enquanto entretenimento. O livro segui o modelo do Decamerão, de Boccaccio,
e as Mil e Uma Noites, obedece ao modelo de contar pequenas histórias
independentes dentro de uma história maior; e, embora seja bem escrito,
torna-se repetitivo à medida que as histórias se desenrolam, como alguns já
apontaram; mas tudo em Sade tem uma razão filosófica, até mesmo sua chatice, a
qual é devido ao seu espírito filosófico
de ordenação, o que o levou a tratar o sexo do mesmo modo que o filósofo D.
DIDEROT fez com o conhecimento de seu tempo: ordenando-o e classificando-o em
uma enciclopédia; e é isso que nos parece ser “Os Cento e Vinte Dias de
Sodoma”: uma espécie de enciclopédia das perversões então conhecidas, o que lhe
dá, sem dúvida, certo refinamento de libertinagem, que não encontramos em
outros escritores libertinos de sua época, em que as pequenas variantes são
fundamentais, tornando, por isso, o livro um catálogo de perversões, explorando
seus detalhes e todas as possíveis variantes de cada uma; o que é confirmado
pelo autor logo em sua introdução:
“Estude
intimamente a paixão que à primeira vista parece assemelhar-se completamente a
outra e verá que essa diferença existe e, por menor que seja, ela possui
precisamente este refinamento e este toque que distingue e caracteriza o gênero
de libertinagem sobre o qual se discorre.”
Conclusão:
então há a história, por exemplo, do sujeito que gosta de comer vômito; de
outro que gosta de comer fezes; e como variante, temos o homem que gosta de
defecar na boca da parceira e dela receber sua sujeira diretamente na boca.
Etc. Tornando-o, por isso, leitura obrigatória para psiquiatras. O que o torna, de certa forma, cansativo; e
pensar que se fosse terminado o livro teria, provavelmente, quatro grossos
volumes. Resultado: torna-se, às vezes, maçante como uma enciclopédia; mas, no
geral, é um ótimo livro. E assim como uma enciclopédia, o livro é indicado
apenas para quem esteja muito interessado na filosofia sadiana, e que possa,
claro, suportar o inferno de Sade; um inferno cheio de sexo, dor e submissão,
que exige, além de paciência, estômago forte e bastante coragem; tarefa que
poucas pessoas têm se aventurado.
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