quinta-feira, 18 de abril de 2013

POR MAIS TEMPO (Um Conto "Cross-Dressing" de Marcos Salvatore)



Uma voz feminina, no andar de baixo, toca Andrea Doria ao violão. Um homem de sua varanda olha para baixo, coça o cu, desconfiado, enquanto canta baixo, junto com a canção. Dez da manhã. O porteiro grita, interrompendo meu julgamento do mundo.
- Uma moça aqui em baixo. Posso mandar subir?
- Uma moça? E como ela é? – e já um calafrio insuspeito e inesperado.
- Vinte e poucos anos. Bate um bolão.
- Manda subir, digo sem pensar.
Volto para a varanda. A voz agora canta Beechwood Park. Sua voz parece triste. Trilhas sonoras são difíceis de bolar. A música brasileira vive muito no passado. É por isso que ninguém fode ouvindo Chico, nem Milton. Mas Elis Regina é duca: Me deixas louca...
Quem será? Deve ser alguém vendendo bíblias, uma Testemunha de Jeová ou auditiva ou ocular. A campainha toca. Olho pelo olho mágico embaçado e não vejo ninguém. Abro a porta.
(...)
- Como me achou?
- Oiiiii! Antes de tudo, eu tenho uma boa e uma má notícia pra te dar. Qual tu queres primeiro? Seja sincero.
- Deixa ver. Acho que é melhor saber da má. É. Pode falar. Manda ver. Manda bala.
- Como adivinhou?
Mal consegui sentir medo ao ver a arma que ela tira rapidamente da bolsa. Também o tiro que me atingiu de raspão no ombro não me assustou. Só senti temor quando minha ex-noiva, evangélica, cantora de gospel, calmamente entra e fecha a porta atrás de si, assoviando, enquanto eu me contorço no chão.
- Agora a boa notícia, Amore: Eu não te amo mais. E, se eu não te amo mais, posso perfeitamente te esquartejar ainda vivo, depois pegar teu saco cortado e jogar pros urubus comerem. Hein? Que tal?
- Baby, escuta, Baby. Olha. Vamos falar sério.
- Como é bom te ver aí, rastejando igual a uma lesma. Seu micróbio nojento!
Ela caminha calmamente e se senta no sofá. Olha pra mim de uma forma que, de um jeito que...
- Hum. Vamos ver. Por onde eu começo? Ah, já sei. Tu ainda tens daqueles cigarros de cravinho? Oh, não consegue falar. Não se preocupe, eu trouxe uma carteira pra mim, e não te dou, que faz mal. Talvez uma musiquinha leve para este reencontro, ui, tão esperado.
Vai até o quarto e volta com um cigarro já aceso - ainda penso em pedir um, mas lembrei que um homem baleado dificilmente fuma, a não ser em filmes B. Tira os sapatos e senta bem perto de mim. Chuta meu ferimento, eu grito, grito muito e ela senta a mão na minha cara.
- Cala a boca, merda! Quer que o prédio inteiro saiba? Não era pra eu te estabefar, mas foi bem feito, quem manda gritar, aí, que nem criança?
- Saiba do quê? Au, au...
- Isso. Late seu cachorro, fedorento.
- Por quê? Por quê? O que foi que eu fiz? Escuta, me escuta. Eu juro que ia te procurar.
- Sabe a impressão que eu sempre tive de ti? A de que o fracasso te faz feliz. É. Tu és um parasita. (...) Sei que não devia mais fumar. Mas eu adoro esse de cravinho. Hum?
- Eu tô sangrando (isso é importante de lembrar: geralmente antes de morrer, sangramos).
Ela me ouvia. Nenhuma reação. Seus olhos virados para a varanda. Parecia intrigada com algo.
- Escuta. Que música é essa, hein? Essa, que vem aqui de baixo. Parece a nossa música.
A dor era tão grande que, antes de desmaiar pela dor, só consegui balbuciar:
- Parece...
Sonho com uma rua da Cidade Velha, lá embaixo. Estou baleado e entro e saio de portas de plástico, até ter acesso a um banheiro com uma vitrola tocando um tango vagabundo, tão gostoso de ouvir que me sento no bidê e a vontade de cagar se apresenta sem cerimônia. Até que dois velhinhos negros, muito idosos mesmo, entram e começam a dançar lascivamente. Sinto um cheiro de rosas e imagino que é o meu cocô, descendo feliz. Mas não era.
Acordo e o meu ferimento está medicado. Tinha esquecido que Eulampia era enfermeira formada, e das melhores. Os pacientes viviam me dizendo que ela tinha mãos de fada. Penso: - Mãos e boca de fada; cada boquete..., mas me lembro de odiá-la novamente pelo tiro.
Estou amarrado com punhos de rede; mãos e pés separados, no chão da sala. O pai dela, que era marinheiro, fez questão de ensinar uma porção de truques para a garotada. Não era um pai nada tedioso o Seu Bona.
- Baby!
Volta da cozinha, de avental.
- Sim, amor?
- Poderia me desamarrar? Preciso ir ao banheiro.
- Ô, amor. Desculpa, mas não posso... ainda não.
- Mas é número dois. Número dois, porra!
- Olha o palavrão. A cera ainda está no fogo.
- Que cera? Pergunto e me lembro da Mãe dizendo: - “Passa de novo que ainda não tá brilhando. Passa. Vai.”
- Tu vais ver, ou melhor, sentir. Agora dorme mais um pouquinho, tá, amore? Tenho uma idéia pra tu dormires rapidinho.
Me dá um chute no saco e no estômago tão grande que me mijo e me peido todo antes de desmaiar outra vez.
Sonho com o dia em que nos conhecemos.
Eu estava voltando de uma putada no Bazar do Rock, e os amigos me deixaram na rodoviária. Estava tão cansado e bêbado que acabei usando meu exemplar de O Nome da Rosa (que eu nunca li) como travesseiro e adormeci. Acordo com aquela coisinha fofa em pé, bem na minha frente, toda de branco, com aquela marca de calcinha me olhando. Levanto e chego, bem por trás, apalpando sua bundinha durinha, dedo do meio em riste. Não deu outra, ela se virou e sentou a bolsa pesada na minha cara, quebrando o meu nariz, merecidamente.
- Ai, me perdoa, eu não queria. Achei que fosse ladrão, ai, meu Deus. Eu quebrei teu nariz!
- Oh... Oh... Eu só ia perguntar as horas e tropecei, moça. Oh... Oh...
Pegou um táxi e me levou para o hospital onde trabalhava. No caminho, colocou minha cabeça em seu colo, sujando toda a sua roupa de sangue. Sentia o perfume dos seus peitos, sentia seu calor roçando a minha ressaca banhada em suor.
Depois dos curativos me levou para o sua quitinete, sob os protestos das colegas de trabalho:
- Mas, o que é isso? Pra quê isso? Tá doida?
- Ele não tem pra onde ir desse jeito, mora longe. E a culpa foi minha, mesmo.
- Sua tonta. Não tá vendo que isso é vagabundo profissional? Só quer um pezinho para se encostar.
- Vão cuidar da vida.
Ela sempre dizia que se apaixonou quando sentiu o cheiro do meu café, levantou e viu toda a louça lavada, todo o cômodo arrumado com janelas abertas. Pensou que eu tivesse ido embora, mas logo em seguida eu chegava com pão, “mortandela”, margarina com sal. Não era o pedaço de bosta que as companheiras de trabalho pintaram, afinal.
- Obrigado, eu disse. – Daqui a pouco eu vou embora.
Se aproximou de mim com os dedos enrolados na gola da camisola. Olhou para a mesa posta e me perguntou:
- Tu não ias perguntar as horas, não é?
- Não.
(...)
Na primeira foda os seus peitos batiam e batiam no meu nariz. Meus gemidos de dor lhe davam mais tesão enquanto ela pulava e pulava. Acho até que aquela mulher não trepava há muito tempo. Nunca perguntei. Fica a dúvida. Ela era demais.
- Acorda, Amor. Acorda?
- Oi, estava sonhando contigo. Com a primeira vez que a gente...
- Ah, é? Que lindo. – Disse isso e puxou o primeiro retângulo de pelos das minhas pernas.
- UAAAAHHAHAHAHAHAHAH!
Minha pernas estavam remeladas com cera quente de depilação e ela colava e puxava, colava e puxava.
- Sabe, amor. Lembra quando tu me dizias: - Pra quê tanto cuidado com beleza se a tua cara é a mesma? – Pois é, eu me lembro de tudinho. Lembra quando me deixava sozinha e chegava de manhã? Lembra de quando nunca mais voltou?
A tortura durou uma hora, mais ou menos. A dor foi tanta que quando ela depilou todos os pelos do meu saco eu quase, quase miei.
Depois, o peito. Em seguida o sovaco.
- Pronto. Ficou lindo. Que nem um pato prestes a enfrentar o tucupi. (?) Ah, mas falta o principal.
Ainda consegui balbuciar: - O quê, pelo amor da puta merda está faltando?
- Ué, a bundinha claro!
- Não, Pia (seu apelido era Pia). O meu cu, não! O meu cu, não! Pia, não! Como uma crente pode pensar numa coisa dessas?
- Não sou mais religiosa. Um estágio no inferno faz maravilhas, Neto (apelido: meu nome é Minervino, muito prazer).
Esperneei o quanto pude, mas ela finalmente tirou um líquido da bolsa e derramou num lencinho de linho. Enfiou aquilo na minha cara e eu apaguei, completamente. Acordei com o cu pelado.
Mais tarde, o cheiro de esmalte vermelho me lembrou de quando eu, realmente, caçoava dela. Tudo besteira de macho. Eu não sabia como amar uma mulher tão legal, então fingia que ela não era pra mim. Brigava por nada, dei uma de nojento total com ela, implicava com tudo. Não queria que ela me amasse mais. O seu caráter generoso me fazia lembrar do quanto eu era imperfeito.
Ela me pintou as unhas com tanta delicadeza, com tanto carinho que cheguei a ter uma ereção involuntária.
Notou e me olhou, um pouco surpresa, enquanto uma lágrima, também involuntária caia do meu olho esquerdo, me fazendo lembrar que talvez ainda a amasse demais. Mas, não disse nada. Apenas voltou ao serviço, um pouco perturbada, talvez pensativa (ou arrependida).
Também fez chapinha no meu cabelo crespo de branco neto de negro. Aquilo dói pra caralho. Mas, eu não reclamava mais. Queria que aquilo terminasse logo. Mesmo quando ela, com uma pinça, habilidosamente, fez a minha sobrancelha, eu não gemi, nem reclamei.
Aquilo também dói que nem o cão.
Foi quando estava me fazendo a maquiagem que finalmente me explicou.
- Tu me usaste. E eu te amava. Isso não se faz com alguém que nos ama. Me traiu, me explorou. Me enganou, me abandonou. Eu enlouqueci, perdi meu emprego por faltar todos os dias te procurando  em necrotérios. Até que um dia encontrei um dos teus amigos de farra e ele me disse que tu estavas aqui, nesse penico, escondido. Seu fujão. Se não me amava mais bastava ter dito.
- Pia, eu nunca te trai. Só estava com medo.
- Medo é o caralho! Não, não diz mais nada. Seu puto. Depois que eu terminar te dou um tiro e depois me mato. Vamos apodrecer juntos aqui.
- Pia.
Ela estava de calcinha transparente, peladinha por baixo. Os biquinhos dos seus peitos se eriçaram, eu pude perceber, quando ela me pegou olhando, examinando.
- Que foi? Não me faz chorar agora com mentiras, senão eu erro aqui o traçado. Para de me olhar. Quer parar?
- Pia. Tu não queres fazer isso. Por que não me dá uma surra com cabo de vassoura, me quebra todo na porrada e vai embora? Tens a vida inteira pela frente. O lixo é o meu lugar, não o teu.
- Agora, sim. Só falta o vestido.
- Que história é essa de vestido, Pia? Não vou vestir porra nenhuma! Isso já é demais.
- Vai sim, senão eu atiro nos teus culhões e a morte vai ser bem mais lenta. Bora logo! Eu vou te soltar. E quando eu te soltar vai me obedecer.
Coloquei o vestido tremendo de raiva. E os sapatos número quarenta que ela descolou em algum marreteiro da João Alfredo. Trouxe o espelho e eu parecia um calouro dos Dzi Croquettes. Pensei em pular pela janela, mas pensei nela sendo presa. Ao invés disso, avancei e a agarrei com o pouco de força que eu ainda tinha, jogo sua arma longe e a seguro no chão, por cima dela, seguro suas mãos. A gente se olha e ela começa a chorar. Um choro que faria o próprio diabo voltar atrás. Uma vontade de beijar seus lábios entreabertos e sofridos...
(...)
Eu a solto. Me levanto e dou três passos para trás com as mãos para trás e os dedões para cima.
Ela me olhou de cima a baixo. Meu mudo consentimento a fez enxugar as lágrimas com as costas da mão. Foi buscar o revólver. Deteve-se a dizer apenas:
- Agora preciso te amarrar uma última vez.
- Pra quê? Já não conseguiu o que queria? Pode me matar agora. Minha vida não vale mais nada.
- Calado, cachorro. A única pessoa com moral aqui sou eu.
Me amarrou na cama, de par em par. Depois começou a tirar a roupa: o vestido, as meias, soltou os cabelos loiros, depois do sutiã aqueles lindos seios rosados apareceram, de olhos abertos pontiagudos pra mim; depois da calcinha pude sentir o ar de sua buceta carnuda. Ela foi sistemática: ao perceber meu pau quase rachando de duro, levantou meu vestido, rasgou minha calcinha com os dentes e o tomou entre os dedos para o maior boquete que um homem poderia esperar de uma assassina em potencial, me chupou tanto como se sua vida dependesse disso, depois se posicionou de forma que eu sentisse a presença dos seus lábios vaginais em contato com minhas pernas, recém depiladas. Seus mamilos faziam círculos, como um compasso nas minhas coxas, desenhavam planetas. Eu estava quase gozando, meu Deus, eu estava quase gozando um universo pelos poros. Foi então que ela subiu e montou em mim. Soltou minhas mãos e meus pés para chegarmos juntos. Sua bunda tremia ao se encaixar nos boleros apaixonados do meu pau, minhas mãos se agarraram famintas em seus quadris que velejavam a todo pano. Vários orgasmos depois, ela, ainda suspirando delícias, me abraça e diz chorosa: - Não vim aqui pra te matar. Eu vim te buscar, meu amor.
Horas depois, enquanto eu vigiava o seu sono, lutando contra o cansaço, lutando por mais tempo abraçado a ela, acordado finalmente, só conseguia pensar na época em que andava por aí, perdido do caminho de casa, procurando uma surpresa.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

O MARQUÊS DE SADE ENCOMENDA UMA MISSA (por Pedro Corrêa do Lago)



Este artigo, tirado do site da revista Piaui, ajuda a derrubar um dos grandes mitos sobre Sade: seu exacerbado ateísmo. Aliás, penso que isto pode ser generalizado: ateus são mais tolerantes com religiosos que estes àqueles.   

Visto no século XVIII como a própria encarnação do demônio por alguns de seus contemporâneos e lido clandestinamente no século XIX, o marquês de Sade tornou-se, no século XX, um dos autores de seu tempo mais respeitados da literatura francesa.
Exerceu ao extremo a liberdade preconizada pelo Século das Luzes e cometeu todo tipo de excessos, muitos dos quais descritos em seus romances famosos como Justine, Os Cento e Vinte Dias de Sodoma ou A filosofia no boudoir.
Mas é, sobretudo, por ter sido cunhado o termo sadismo a partir de seu sobrenomeque o marquês de Sade tornou-se imortal. Tido pelas autoridades do rei como perigoso, Sade ficou prisioneiro durante quase trinta anos. Sempre disposto a inúmeras querelas, passou a vida tentando esquivar-se de um cortejo de credores e de advogados.
A carta reproduzida nesta página é inesperada vinda de quem vem. Data de 1771, quando o marquês era ainda livre e jovem com 30 anos, mas já era conhecido por seu estilo de vida libertino. Entre várias propriedades, havia herdado de seu pai o castelo de Mazan, cujo capataz acabara de morrer.
Sade escreve ao sobrinho do capataz, chamado Ripert, que lhe havia dito pretender continuar na função do tio, e faz na carta um pedido surpreendente:


“Convencido de seu zelo e afeto por mim, meu caro Senhor, concedo-lhe com prazer o cargo de meu responsável e procurador em Mazan, ocupado antes pelo seu tio Taulier, cuja perda, confesso, não poderia ter sido para mim mais penosa. Espero que queira substituí-lo não apenas em suas funções, mas também em seu real afeto por minha pessoa. Peço-lhe que esteja presente numa missa que exijo e ordeno que se reze por ele às minhas custas na igreja em que foi enterrado.
Continuo, Senhor, seu muito humilde e muito obediente servidor.
De Sade”.
Sade observava, como faziam todos na correspondência da época, as fórmulas fixas de cortesia, que exigiam que o correspondente se declarasse “humilde servidor” da pessoa a quem dirigia a carta. Neste caso é especialmente saboroso que se declare “servidor” de seu servidor.
Mas o mais surpreendente é que Sade queira encomendar uma missa católica e não uma missa negra, como sua reputação deixaria esperar.

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