Uma voz feminina, no
andar de baixo, toca Andrea Doria ao violão. Um homem de sua
varanda olha para baixo, coça o cu, desconfiado, enquanto canta baixo, junto
com a canção. Dez da manhã. O porteiro grita, interrompendo meu julgamento do
mundo.
- Uma moça aqui em baixo.
Posso mandar subir?
- Uma moça? E como ela é?
– e já um calafrio insuspeito e inesperado.
- Vinte e poucos anos.
Bate um bolão.
- Manda subir, digo sem
pensar.
Volto para a varanda. A
voz agora canta Beechwood Park. Sua voz parece triste. Trilhas
sonoras são difíceis de bolar. A música brasileira vive muito no passado. É por
isso que ninguém fode ouvindo Chico, nem Milton. Mas Elis Regina é duca: Me
deixas louca...
Quem será? Deve ser
alguém vendendo bíblias, uma Testemunha de Jeová ou auditiva ou ocular. A
campainha toca. Olho pelo olho mágico embaçado e não vejo ninguém. Abro a
porta.
(...)
- Como me achou?
- Oiiiii! Antes de tudo,
eu tenho uma boa e uma má notícia pra te dar. Qual tu queres primeiro? Seja
sincero.
- Deixa ver. Acho que é
melhor saber da má. É. Pode falar. Manda ver. Manda bala.
- Como adivinhou?
Mal consegui sentir medo
ao ver a arma que ela tira rapidamente da bolsa. Também o tiro que me atingiu
de raspão no ombro não me assustou. Só senti temor quando minha ex-noiva, evangélica,
cantora de gospel, calmamente entra e fecha a porta atrás de si, assoviando,
enquanto eu me contorço no chão.
- Agora a boa notícia,
Amore: Eu não te amo mais. E, se eu não te amo mais, posso perfeitamente te
esquartejar ainda vivo, depois pegar teu saco cortado e jogar pros urubus
comerem. Hein? Que tal?
- Baby, escuta, Baby.
Olha. Vamos falar sério.
- Como é bom te ver aí,
rastejando igual a uma lesma. Seu micróbio nojento!
Ela caminha calmamente e
se senta no sofá. Olha pra mim de uma forma que, de um jeito que...
- Hum. Vamos ver. Por
onde eu começo? Ah, já sei. Tu ainda tens daqueles cigarros de cravinho? Oh,
não consegue falar. Não se preocupe, eu trouxe uma carteira pra mim, e não te
dou, que faz mal. Talvez uma musiquinha leve para este reencontro, ui, tão
esperado.
Vai até o quarto e volta
com um cigarro já aceso - ainda penso em pedir um, mas lembrei que um homem
baleado dificilmente fuma, a não ser em filmes B. Tira os sapatos e senta bem
perto de mim. Chuta meu ferimento, eu grito, grito muito e ela senta a mão na
minha cara.
- Cala a boca, merda!
Quer que o prédio inteiro saiba? Não era pra eu te estabefar, mas foi bem
feito, quem manda gritar, aí, que nem criança?
- Saiba do quê? Au, au...
- Isso. Late seu
cachorro, fedorento.
- Por quê? Por quê? O que
foi que eu fiz? Escuta, me escuta. Eu juro que ia te procurar.
- Sabe a impressão que eu
sempre tive de ti? A de que o fracasso te faz feliz. É. Tu és um parasita.
(...) Sei que não devia mais fumar. Mas eu adoro esse de cravinho. Hum?
- Eu tô sangrando (isso é
importante de lembrar: geralmente antes de morrer, sangramos).
Ela me ouvia. Nenhuma
reação. Seus olhos virados para a varanda. Parecia intrigada com algo.
- Escuta. Que música é
essa, hein? Essa, que vem aqui de baixo. Parece a nossa música.
A dor era tão grande que,
antes de desmaiar pela dor, só consegui balbuciar:
- Parece...
Sonho com uma rua da
Cidade Velha, lá embaixo. Estou baleado e entro e saio de portas de plástico,
até ter acesso a um banheiro com uma vitrola tocando um tango vagabundo, tão
gostoso de ouvir que me sento no bidê e a vontade de cagar se apresenta sem
cerimônia. Até que dois velhinhos negros, muito idosos mesmo, entram e começam
a dançar lascivamente. Sinto um cheiro de rosas e imagino que é o meu cocô,
descendo feliz. Mas não era.
Acordo e o meu ferimento
está medicado. Tinha esquecido que Eulampia era enfermeira formada, e das
melhores. Os pacientes viviam me dizendo que ela tinha mãos de fada. Penso: -
Mãos e boca de fada; cada boquete..., mas me lembro de odiá-la novamente pelo
tiro.
Estou amarrado com punhos
de rede; mãos e pés separados, no chão da sala. O pai dela, que era marinheiro,
fez questão de ensinar uma porção de truques para a garotada. Não era um pai
nada tedioso o Seu Bona.
- Baby!
Volta da cozinha, de
avental.
- Sim, amor?
- Poderia me desamarrar?
Preciso ir ao banheiro.
- Ô, amor. Desculpa, mas
não posso... ainda não.
- Mas é número dois.
Número dois, porra!
- Olha o palavrão. A cera
ainda está no fogo.
- Que cera? Pergunto e me
lembro da Mãe dizendo: - “Passa de novo que ainda não tá brilhando. Passa.
Vai.”
- Tu vais ver, ou melhor,
sentir. Agora dorme mais um pouquinho, tá, amore? Tenho uma idéia pra tu
dormires rapidinho.
Me dá um chute no saco e
no estômago tão grande que me mijo e me peido todo antes de desmaiar outra vez.
Sonho com o dia em que
nos conhecemos.
Eu estava voltando de uma
putada no Bazar do Rock, e os amigos me deixaram na rodoviária. Estava tão
cansado e bêbado que acabei usando meu exemplar de O Nome da Rosa (que
eu nunca li) como travesseiro e adormeci. Acordo com aquela coisinha fofa em
pé, bem na minha frente, toda de branco, com aquela marca de calcinha me
olhando. Levanto e chego, bem por trás, apalpando sua bundinha durinha, dedo do
meio em riste. Não deu outra, ela se virou e sentou a bolsa pesada na minha
cara, quebrando o meu nariz, merecidamente.
- Ai, me perdoa, eu não
queria. Achei que fosse ladrão, ai, meu Deus. Eu quebrei teu nariz!
- Oh... Oh... Eu só ia
perguntar as horas e tropecei, moça. Oh... Oh...
Pegou um táxi e me levou
para o hospital onde trabalhava. No caminho, colocou minha cabeça em seu colo,
sujando toda a sua roupa de sangue. Sentia o perfume dos seus peitos, sentia
seu calor roçando a minha ressaca banhada em suor.
Depois dos curativos me
levou para o sua quitinete, sob os protestos das colegas de trabalho:
- Mas, o que é isso? Pra
quê isso? Tá doida?
- Ele não tem pra onde ir
desse jeito, mora longe. E a culpa foi minha, mesmo.
- Sua tonta. Não tá vendo
que isso é vagabundo profissional? Só quer um pezinho para se encostar.
- Vão cuidar da vida.
Ela sempre dizia que se
apaixonou quando sentiu o cheiro do meu café, levantou e viu toda a louça
lavada, todo o cômodo arrumado com janelas abertas. Pensou que eu tivesse ido
embora, mas logo em seguida eu chegava com pão, “mortandela”, margarina com
sal. Não era o pedaço de bosta que as companheiras de trabalho pintaram,
afinal.
- Obrigado, eu disse. –
Daqui a pouco eu vou embora.
Se aproximou de mim com
os dedos enrolados na gola da camisola. Olhou para a mesa posta e me perguntou:
- Tu não ias perguntar as
horas, não é?
- Não.
(...)
Na primeira foda os seus
peitos batiam e batiam no meu nariz. Meus gemidos de dor lhe davam mais tesão
enquanto ela pulava e pulava. Acho até que aquela mulher não trepava há muito
tempo. Nunca perguntei. Fica a dúvida. Ela era demais.
- Acorda, Amor. Acorda?
- Oi, estava sonhando
contigo. Com a primeira vez que a gente...
- Ah, é? Que lindo. –
Disse isso e puxou o primeiro retângulo de pelos das minhas pernas.
- UAAAAHHAHAHAHAHAHAH!
Minha pernas estavam
remeladas com cera quente de depilação e ela colava e puxava, colava e puxava.
- Sabe, amor. Lembra
quando tu me dizias: - Pra quê tanto cuidado com beleza se a tua cara é a
mesma? – Pois é, eu me lembro de tudinho. Lembra quando me deixava sozinha e
chegava de manhã? Lembra de quando nunca mais voltou?
A tortura durou uma hora,
mais ou menos. A dor foi tanta que quando ela depilou todos os pelos do meu
saco eu quase, quase miei.
Depois, o peito. Em
seguida o sovaco.
- Pronto. Ficou lindo.
Que nem um pato prestes a enfrentar o tucupi. (?) Ah, mas falta o principal.
Ainda consegui balbuciar:
- O quê, pelo amor da puta merda está faltando?
- Ué, a bundinha claro!
- Não, Pia (seu apelido
era Pia). O meu cu, não! O meu cu, não! Pia, não! Como uma crente pode pensar
numa coisa dessas?
- Não sou mais religiosa.
Um estágio no inferno faz maravilhas, Neto (apelido: meu nome é Minervino,
muito prazer).
Esperneei o quanto pude,
mas ela finalmente tirou um líquido da bolsa e derramou num lencinho de linho.
Enfiou aquilo na minha cara e eu apaguei, completamente. Acordei com o cu
pelado.
Mais tarde, o cheiro de
esmalte vermelho me lembrou de quando eu, realmente, caçoava dela. Tudo
besteira de macho. Eu não sabia como amar uma mulher tão legal, então fingia
que ela não era pra mim. Brigava por nada, dei uma de nojento total com ela,
implicava com tudo. Não queria que ela me amasse mais. O seu caráter generoso
me fazia lembrar do quanto eu era imperfeito.
Ela me pintou as unhas
com tanta delicadeza, com tanto carinho que cheguei a ter uma ereção
involuntária.
Notou e me olhou, um
pouco surpresa, enquanto uma lágrima, também involuntária caia do meu olho
esquerdo, me fazendo lembrar que talvez ainda a amasse demais. Mas, não disse
nada. Apenas voltou ao serviço, um pouco perturbada, talvez pensativa (ou
arrependida).
Também fez chapinha no
meu cabelo crespo de branco neto de negro. Aquilo dói pra caralho. Mas, eu não
reclamava mais. Queria que aquilo terminasse logo. Mesmo quando ela, com uma
pinça, habilidosamente, fez a minha sobrancelha, eu não gemi, nem reclamei.
Aquilo também dói que nem o cão.
Foi quando estava me
fazendo a maquiagem que finalmente me explicou.
- Tu me usaste. E eu te
amava. Isso não se faz com alguém que nos ama. Me traiu, me explorou. Me
enganou, me abandonou. Eu enlouqueci, perdi meu emprego por faltar todos os
dias te procurando em necrotérios. Até que um dia encontrei um dos
teus amigos de farra e ele me disse que tu estavas aqui, nesse penico,
escondido. Seu fujão. Se não me amava mais bastava ter dito.
- Pia, eu nunca te trai.
Só estava com medo.
- Medo é o caralho! Não,
não diz mais nada. Seu puto. Depois que eu terminar te dou um tiro e depois me
mato. Vamos apodrecer juntos aqui.
- Pia.
Ela estava de calcinha
transparente, peladinha por baixo. Os biquinhos dos seus peitos se eriçaram, eu
pude perceber, quando ela me pegou olhando, examinando.
- Que foi? Não me faz
chorar agora com mentiras, senão eu erro aqui o traçado. Para de me olhar. Quer
parar?
- Pia. Tu não queres
fazer isso. Por que não me dá uma surra com cabo de vassoura, me quebra todo na
porrada e vai embora? Tens a vida inteira pela frente. O lixo é o meu lugar,
não o teu.
- Agora, sim. Só falta o
vestido.
- Que história é essa de
vestido, Pia? Não vou vestir porra nenhuma! Isso já é demais.
- Vai sim, senão eu atiro
nos teus culhões e a morte vai ser bem mais lenta. Bora logo! Eu vou te soltar.
E quando eu te soltar vai me obedecer.
Coloquei o vestido
tremendo de raiva. E os sapatos número quarenta que ela descolou em algum
marreteiro da João Alfredo. Trouxe o espelho e eu parecia um calouro dos Dzi
Croquettes. Pensei em pular pela janela, mas pensei nela sendo presa. Ao invés
disso, avancei e a agarrei com o pouco de força que eu ainda tinha, jogo sua
arma longe e a seguro no chão, por cima dela, seguro suas mãos. A gente se olha
e ela começa a chorar. Um choro que faria o próprio diabo voltar atrás. Uma
vontade de beijar seus lábios entreabertos e sofridos...
(...)
Eu a solto. Me levanto e
dou três passos para trás com as mãos para trás e os dedões para cima.
Ela me olhou de cima a
baixo. Meu mudo consentimento a fez enxugar as lágrimas com as costas da mão.
Foi buscar o revólver. Deteve-se a dizer apenas:
- Agora preciso te
amarrar uma última vez.
- Pra quê? Já não
conseguiu o que queria? Pode me matar agora. Minha vida não vale mais nada.
- Calado, cachorro. A
única pessoa com moral aqui sou eu.
Me amarrou na cama, de
par em par. Depois começou a tirar a roupa: o vestido, as meias, soltou os
cabelos loiros, depois do sutiã aqueles lindos seios rosados apareceram, de
olhos abertos pontiagudos pra mim; depois da calcinha pude sentir o ar de sua
buceta carnuda. Ela foi sistemática: ao perceber meu pau quase rachando de
duro, levantou meu vestido, rasgou minha calcinha com os dentes e o tomou entre
os dedos para o maior boquete que um homem poderia esperar de uma assassina em
potencial, me chupou tanto como se sua vida dependesse disso, depois se
posicionou de forma que eu sentisse a presença dos seus lábios vaginais em
contato com minhas pernas, recém depiladas. Seus mamilos faziam círculos, como
um compasso nas minhas coxas, desenhavam planetas. Eu estava quase gozando, meu
Deus, eu estava quase gozando um universo pelos poros. Foi então que ela subiu
e montou em mim. Soltou minhas mãos e meus pés para chegarmos juntos. Sua bunda
tremia ao se encaixar nos boleros apaixonados do meu pau, minhas mãos se agarraram
famintas em seus quadris que velejavam a todo pano. Vários orgasmos depois,
ela, ainda suspirando delícias, me abraça e diz chorosa: - Não vim aqui pra te
matar. Eu vim te buscar, meu amor.
Horas depois, enquanto eu
vigiava o seu sono, lutando contra o cansaço, lutando por mais tempo abraçado a
ela, acordado finalmente, só conseguia pensar na época em que andava por aí,
perdido do caminho de casa, procurando uma surpresa.