domingo, 17 de fevereiro de 2013
KINK.COM: A Liberdade Através do Fetiche
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terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
HÁ LUGAR PARA DOIS (de Marquês de Sade)
Há Lugar para Dois
Uma
belíssima burguesa da rua Saint-Honoré, de aproximadamente vinte e dois anos,
gorduchinha e roliça, carnes as mais viçosas e apetitosas, todas as formas
modelares ainda que um pouco cheias, e que acrescentava a tão fartos encantos
presença de espírito, vivacidade, e gosto o mais aguçado por todos os prazeres
que lhe proibiam as rigorosas leis do himeneu, decidira, havia quase um ano,
arranjar dois ajudantes para seu marido que, sendo velho e feio, a ela não
somente desagradava muito, como também cumpria mal, se não raramente, os
deveres que, talvez, com um pouco mais de desempenho, poderiam acalmar a
exigente Dolmène - assim se chamava nossa bela burguesa. Nada mais bem
combinado do que os encontros marcados com esses dois amantes: Des-Roues, jovem
militar, ficava normalmente das quatro às cinco horas da tarde e das cinco e
meia às sete chegava Dolbreuse, jovem negociante com o rosto mais bonito que se
pode ver. Era impossível fixar outros momentos; eram os únicos em que a Sra.
Dolmène estava tranqüila: de manhã, era preciso estar na loja e, à tarde,
também tinha de aparecer por lá algumas vezes, ou então o marido voltava, e
deviam falar de seus negócios.
Por
sinal, a Sra. Dolmène havia confidenciado a uma de suas amigas que ela gostava
muito que os momentos de prazer se sucedessem assim muito próximos um do outro:
a chama da imaginação não se apagava, ela assegurava; desse modo, nada mais
temo do que passar de um prazer a outro; não era difícil retomar a ação, pois a
Sra. Dolmène era uma criatura encantadora que calculava ao máximo todas as
sensações do amor; pouquíssimas mulheres conheciam-nas como ela própria e, em
virtude dos seus talentos, reconhecera que, depois de muito meditar, dois
amantes valiam muito mais do que um; com respeito à reputação, era quase a
mesma coisa, um encobria o outro; poderiam se equivocar, poderia ser sempre o
mesmo a entrar e sair várias vezes durante o dia, e com relação ao prazer, que
diferença! A Sra. Dolmène, que temia em particular a gravidez, bem segura de
que seu marido jamais com ela cometeria a loucura de lhe arruinar a cintura,
havia igualmente imaginado que, com dois amantes, havia muito menos risco,
quanto ao que temia, do que com um, porque, dizia ela, na condição,de excelente
anatomista, dois frutos se destruíam mutuamente.
Certo
dia a ordem fixada nos encontros veio a se alterar, e nossos dois amantes, que
nunca se tinham visto, conheceram-se de maneira engraçada, conforme
mostraremos. Des-Roues foi o primeiro, mas chegara muito tarde, e como se o
diabo tivesse se intrometido, Dolbreuse, que era o segundo, chegou um pouco
mais cedo.
O
leitor inteligente percebe de imediato que, da combinação desses dois pequenos
erros, deveria acontecer, infelizmente, um encontro infalível: e assim sucedeu.
Porém, mencionaremos como isso se deu e, se possível, ocupemo-nos desse assunto
com toda decência e moderação que tal assunto já por si muito licencioso,
exige.
Por
obra de um capricho bastante bizarro - mas tão comum entre os homens - nosso
jovem militar, cansado do papel de amante, quis, por uns momentos, representar
o da amante; em lugar de ser amorosamente abraçado por sua divindade, quis, por
sua vez, abraçá-la: em resumo, o que está embaixo, coloca-o em cima, e, por
essa inversão de posição, inclinada sobre o altar onde normalmente se oferecia
o sacrifício, era Sra. Dolmène que, nua como a Vênus calipígia, e
encontrando-se estendida sobre seu amante, apresentava, diante da porta do
quarto onde se celebravam os mistérios, o que os gregos adoravam com devoção na
estátua que acabamos de mencionar, essa parte mui bela que, em suma - sem sair
à procura de exemplos tão remotos - encontra tantos adoradores em Paris. Tal
era a atitude quando Dolbreuse, acostumado a entrar sem dificuldade, chega
cantarolando, e vê por um ângulo o que uma mulher verdadeiramente honesta não
deve, segundo dizem, jamais mostrar.
O
que teria causado grande prazer a muitas pessoas fez com que Dolbreuse
recuasse.
-
O que vejo? - exclamou -... Traidora... é isso que me reservas?
A
Sra. Dolmène que, naquele momento, se encontrava numa dessas crises em que uma
mulher age infinitamente melhor do que raciocina, resolve mostrar-se audaciosa:
-
Que diabo tens tu, - diz ela ao segundo Adônis - sem deixar de se entregar ao
outro - não vejo nisso nada que te cause muito pesar; não nos perturbes, meu
amigo, e contenta-te com o que te resta; como bem podes notar, há lugar para
dois.
Dolbreuse,
não conseguindo deixar de rir-se do sangue-frio de sua amante, pensou que o
mais simples era seguir o conselho dela, não se fez de rogado, e dizem que os
três lucraram com isso.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
"BATA-ME PELO AMOR DE DEUS" (de Bosco Silva)
“O pênis é a menor distância entre duas almas”
Marquês
de Sade
Havíamos
criado uma confraria, uma irmandade, a Confraria dos Poetas Libertinos. Que
abrigava alguns dos mais pervertidos de nossa época. Dedicávamos
incessantemente a essa grande arte, já quase esquecida, minada pelos problemas
econômicos e religiosos, mas que a tanto custo se mantinha viva, embora
houvesse perdido muito em qualidade ao longo de tanto tempo: a grande arte da
foda.
Fazíamos
jus a cada gota de esperma, a cada estocada bem metida, a cada gota de suor
expelida, como havia nos ensinado o grande Marquês de Sade. Nossa irmandade se
encontrava uma vez ao mês para botar não apenas a grande arte em prática, nos
melhores e piores puteros que conhecíamos, como para contar as mais libertinas
e devassas histórias, embaladas ao mais doce vinho. Um verdadeiro culto à Baco,
a esse Deus tão jovial e ao mesmo tempo tão esquecido, perdido entre as coisas
consideradas antigas.
A
libertinagem naqueles tempos era levada a sério, como nos saudosos tempos
bíblicos. Lá se encontravam Petrúquio, o “sagaz”; Martinho, o “libertino”;
Márcio, o “espirituoso”, e assim, como tantos outros, modelos que fazem tanta
falta aos dias de hoje.
Uma
noite no bordel...
-
Ao sabor deste maravilhoso vinho, neste templo sagrado à luxúria, após uma
maravilhosa orgia, companheiros, contem-nos suas aventuras, suas histórias mais
pecaminosas, que poucos mortais contariam com orgulho – disse-lhes Petrúquio,
já bastante embriagado pelo doce sabor do vinho.
-
E tu Petrúquio, não terias uma boa história a nos contar? – disse Edgar.
-
Como todo bom e velho libertino, mas não antes de abastecermos nossas mesas
novamente com este maravilhoso vinho.
Taverneira,
não vedes que temos sede, não apenas de vida, mas também de vinho? Então,
sirva-nos sua maldita – gritou Petrúquio.
Após
alguns goles, e enxugando as gotas de vinho que lhe escorria pela barba com a
manga da camisa, pôs-se a relatar sua história:
-
Havia alguns anos que não encontrava um velho amigo, exímio apostador e um
grande libertino. E por acaso, encontrei-o numa noite na rua.
Convidou-
me, então, para tomar alguns goles de vinho. E como um bom jogador, após
relembrarmos algumas aventuras, pôs-se logo a fazer mais uma das famosas
apostas suas.
Disse-me:
“Aposto que não és mais capaz, oh! Petrúquio, das nossas velhas aventuras. Tens
ainda coragem de entrar num puteiro, ludibriar, e fazer com que a puta não lhe
cobre?”
Confesso
que há muito tempo tinha perdido a prática em tal ato, mas não pude, de modo algum
esmorecer. Disse-lhe, então: - Vamos, escolha o bordel e a puta.
O
bordel escolhido foi de Madame Nise, antiga cafetina, mulher avarenta e
extremamente rígida, como uma madre superiora. A escolha não podia ser pior.
Todavia,
o que a princípio parecia ser péssimo, piorou, ainda mais, quando também ela
foi a escolhida.
Nise,
mulher elegante, de finos modos, mas que aparentava ser fria, como aquelas
putas que fornicam com o olho no relógio.
Levei-a,
então, para o quarto... Parecia que tinha esquecido a muito o prazer em sua
memória.
Tratei-a
ora como uma verdadeira dama, ora como a mais devassa das putas, pois, como
sabêis, na arte do amor, deve-se tratar uma puta como uma dama, e uma dama como
uma puta. Eis um segredo infalível!
Pois
bem. Chupei com avidez seu clitóris..., masturbei-a incessantemente...,
beijei-a até mesmo onde a luz do sol não a clareia..., mas nada parecia ser o
bastante. Penetrava-lhe, então, com ardor..., mas ela continuava fria, como uma
morta. Tentei de tudo que a uma boa ou má mulher excitaria, pois, lembrei-me
que mesmo uma puta haveria de ter seus caprichos. E que agradando-a, talvez, me
recompensaria com uma noite gratuita.
Em
um dado momento, já desesperado por nenhuma resposta, dei-lhe pequenas tapas,
como forma de desabafo, que estalavam em seu rosto gorduchinho. Ela, para minha
surpresa e felicidade, sorrindo, imediatamente, começou a implorar-me:
-
Bata-me... bata-me... pelo amor de Deus, bata-me...
-
Ah! Safada - exclamei pensativo.
E
enquanto mais me pedia, mais eu intercalava com a ausência de tapas, o que me
dava um prazer enorme em provocá-la, e ver lhe suplicar-me. O que, por outro
lado, certamente, mais lhe excitava, implorando por tapas cada vez mais fortes.
-
Mais... mais... mais... – então, dizia.
As
tapas, os sorrisos, seu corpo na fúria louca do desejo, iam num crescendo que
parecia não terem fim...
E,
enfim, realizando seus desejos, acabei por desmaiá-la, em um misto excitante de
prazer e dor, por meio de tantas tapas.
E
saindo de lá como entrei, com os bolsos sem nenhum níquel, não apenas ganhei a
aposta, como a lembrança de uma de minhas melhores memórias.
Petrúquio,
em seguida, em meio a tantos risos, levantando-se da mesa, pôs-se a declamar o
Soneto de todas as Putas de Bocage, tendo na mão, levantada, uma grande taça de
vinho:
Não
lamentes, oh Nise, o teu estado;
Puta
tem sido muita gente boa;
Putíssimas
fidalgas tem Lisboa,
Milhões
de vezes putas têm reinado:
Dido
foi puta, e puta d’um soldado;
Cleópatra
por puta alcança a coroa;
Tu,
Lucrécia, com toda a tua proa,
O
teu cono não passa por honrado:
Essa
da Rússia imperatriz famosa,
Que
inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre
mil porras expirou vaidosa:
Todas
no mundo dão a sua greta:
Não
fiques pois, oh Nise, duvidosa
Que
isso de virgo e honra é tudo peta.
-
Ah! Bocage que seria dos poetas sem as putas – exclamou Petrúquio.
-
E nada seriam das putas sem os libertinos! – completou Márcio.
-
Um viva, pois, a estas verdadeiras discípulas de Vênus, a estes seres tão
desprezados, outrora tão cultuados, e que, ao contrário das hipócritas
virtuosas, fazem tanto bem à sociedade, pois quantos estupros não têm evitado!
Após
o imenso murmúrio que se seguiu às palavras de Petrúquio, com os convivas ora
aplaudindo, ora gritando: viva as putas, viva as putas... disse-lhe Márcio:
-
Então Nise era uma masoquista?
-
Quanto a isso não há a menor dúvida.
-
Assim como não há a menor duvida que és um sádico – completou Márcio.
sábado, 2 de fevereiro de 2013
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013
A LITERATURA PODE SER PERIGOSA? - EM PAUTA: NIETZSCHE E SADE (por Bosco Silva)
RESUMO: O texto a seguir
corresponde a uma pequena releitura do ensaio “Os perigos da Literatura: o ‘caso Sade’”, de Eliane Robert Moraes,
contido no livro “Lições de Sade –
ensaios sobre a imaginação libertina”, da mesma autora; porém sendo incluso
também na análise a obra de Nietzsche, devido a semelhança de pensamento,
repercussão, estilo, em que há a mescla de filosofia e literatura, no caso de
Nietzsche, poesia e filosofia à semelhança da obra de Sade.
DOIS CRIMINOSOS E UM LIVRO EM COMUM
Mark Chapman, o homem que assassinou John Lennon, foi
encontrado pela polícia quando lia tranquilamente O Apanhador no Campo de Centeio do escritor americano J.D.Salinger.
John Hincley Jr., o homem que atirou no presidente americano
Ronald Reagan, nos anos 80, para supostamente chamar a atenção da atriz Judie
Foster, também tinha um exemplar do livro de Salinger em casa.
Teria este livro o poder de despertar em pessoas comuns, o
poder da ira, do assassinato?
Coincidência ou não, o texto a seguir tenta dar respostas
para tal questão, examinando dois outros casos de suposta relação entre crimes
e livros.
Em 1924, tem inicio, uma nova forma de assassinato, o
assassinato como teste de ideias filosóficas, e em que a literatura, melhor, a
filosofia de Nietzsche, foi acusada como um dos elementos incentivadores para
tal crime. É o que podemos ver através da história do caso Leopold-Loeb.
Nathan Freudenthal Leopold Jr. e Richard Albert Loeb, ambos,
na época, com 19 e 18 anos, respectivamente, eram dois alunos com inteligência
excepcional, pertencentes a Universidade de Chicago, que decidiram, em 1924,
cometer o crime perfeito. Para tanto, sequestraram e mataram Bobby Franks,
então um garoto de 14 anos.
Leopold e Loeb achavam-se pessoas excepcionais, ideia tirada
de suas façanhas intelectuais: ambos eram superdotados; Leopold falou suas
primeiras palavras com apenas quatro meses de idade; já Loeb era, então, o mais
novo graduado pela Universidade de Michigan. Ambos começaram a praticar
pequenos crimes. Achando-se superiores as penalidades das leis, partiam cada
vez mais para crimes mais audaciosos, até que, para testar suas capacidades,
resolveram cometer o mais grave de todos: o assassinato. Passaram seis meses
arquitetando-o, em seus mínimos detalhes; já haviam escolhido a vítima: o
garoto Bobby Franks, que era vizinho de Loeb, e pertencia a família deste.
Ao serem descobertos pelo crime, Leopold e Loeb revelaram
terem cometido o crime inspirado na filosofia de Nietzsche, em sua ideia de
super-homem.
“Antes do assassinato, Leopold escreveu para Loeb: ‘Um superhomen (...) é, em virtude de certas
qualidades superiores inerentes a ele, isento das leis comuns que regem os
homens. Ele não é responsável por qualquer coisa que ele possa fazer.’”
O Advogado Clarence Darrow em Pé, Tendo ao Seu Lado Direito Leopoldo e Loeb |
Temos, pois, um caso da mais extrema violência, em que o
assassinato é justificado através da ideia de superioridade, e em que o
filósofo alemão Nietzsche é relacionado a este por meio de sua obra; tendo tal
fato sido mesmo usado pelo advogado Clarence Darrow, à época um experiente e
conceituado advogado, como meio de evitar que os réus, Leopold e Loeb, fossem
levados à pena de morte, argumentando:
"Esse terrível
crime era inerente a esses garotos, que se originou no passado … devemos culpar
alguém que tomou os ensinamentos de Nietzsche em sua vida? … devemos realmente
condenar um garoto de 19 anos pela filosofia que foi obrigado a absorver na
faculdade?"
Em outras palavras, o advogado culpa a influência da
filosofia de Nietzsche como a verdadeira causa de tal crime.
Mas antes de continuarmos, e tentarmos responder a pergunta
título, o que diz esse filósofo?
Nietzsche (18844 – 1900) conceitua em seus escritos que a
cultura ocidental fora tomada por uma forma de moral decadente, a moral dos
fracos, em que por meio desta é ensinado ao homem a odiar a vida, a apostar
toda sua vitalidade, sua esperança, em uma vida pós morte, esquecendo a vida
concreta, e de seus deveres para com esta; uma moral da renúncia, que em nome
de um paraíso hipotético, esquecem de cultuar a verdadeira vida. Nietzsche, ao
contrário, crê ser portador de uma mensagem aos fortes, busca por meio desta
acordar estes, convidando-os a construir o paraíso na terra, a construir uma
moral forte, que ao rejeitar o além ilusório, não negue a verdadeira vida, e
que não a torne mais ilusória que aquela. Esta nova moral pertenceria aos
fortes que, ao contrário dos anteriores, afirmarão mesmo sobre os maiores
dissabores da vida, seu querer-viver, sua vontade. A tarefa de transmutar os
valores, de afirmar a vida, será, portanto, tarefa dos fortes, tornando-a cada
vez melhor aos seus descendentes, tomando-a em suas mãos, e imprimindo-a o
poder da mudança positiva; é tarefa dada aos homens que não temem viver, que
não precisam de um consolo de além túmulo para suportar o medo da morte, e
também da vida; e a esses homens Nietzsche chamava de superhomens. São tais
homens, que possuem a vontade de poder mudar, estão além de bem e mal, de certo
e errado, posto que são os verdadeiros criadores da verdadeira moral, já que tais
valores pertencem a uma moral decadente, e que deve ser por isso mesmo derrubados.
SADE E NIETZSCHE
Curiosamente, a filosofia de Nietzsche, em parte, fora
antecipada por outro filósofo, um escritor francês, chamado Marquês de Sade,
que como aquele privilegiava a vontade individual, conceituava a moral de seu
tempo como decadente e que subvertia as noções de bem e mal, certo e errado; e
que, curiosamente, também teve sua filosofia acusada de influência criminosa,
como nos conta o escritor americano Roger Shattuck, em seu livro Conhecimento Proibido, em que afirma que
em dois casos de violência sexual seguida de assassinato acontecidos nas
décadas de 60 e 80, nos Estados Unidos, as ideias de Sade estavam presente,
pois os assassinos não apenas disseram que conheciam Sade, como também tinham
cometidos tais crimes sob a influência de suas ideias.
Dois pensadores com
ideias semelhantes, tendo seus nomes e ideias envolvidos em crimes, teria sido
tudo mera coincidência, ou ambos tiveram participação indireta em tais crimes,
provando que a literatura, sim, pode ser perigosa? Mas antes de responder a
isso, o que dizia Sade?
Sade (1740 – 1814), diferentemente de outros pensadores,
escreveu sua filosofia em meio a romances e novelas pornográficas; o que fazia
seus escritos despertar interesse em um público muito mais amplo que não estava
interessado apenas em filosofia, mas também em pornografia; meio que melhor se
adaptava ao seu pensamento, já que o autor pretendia que os homens retornassem
a cultuar os princípios básicos da vida, ao seus instintos básicos, tido por
ele como superior as outras formas de pensamento. Portanto, o sexo era um
elemento fundamental em seus escritos, pois por meio dele o homem poderia
sentir-se como parte da natureza, fato que a moral estabelecida parecia tentar
esconder do homem, criando uma enorme barreira entre este e aquela, moral e
instinto. E assim como Nietzsche, inverteu noções de bem e mal, certo e errado.
Afirmou que a moral baseava-se em noções contrárias à natureza, sendo,
portanto, falsa. A verdadeira moral deveria partir dos verdadeiros princípios
da natureza, de nossos instintos básicos, e não distorcê-los, e negá-los como
impróprio do homem, como então a moral estabelecida tinha feito com o sexo,
vendo nele não algo natural ao homem e aos outros animais, mas algo impróprio
do mesmo, concebendo-o como antinatural, e recheando-o de sentimentos de culpa
e de pecado. Deste modo, em nome dos instintos, Sade passou a defender tudo
aquilo que a moral proibia, mas que, segundo ele, era garantido pela natureza,
como o assassinato; o roubo; as formas mais extremas de sexo, em que o máximo
de prazer está ligado ao mais extremo egoísmo, implicando mesmo na destruição
do objeto do prazer; o incesto; o homossexualismo; o aborto; etc. Ele chegou mesmo
a afirmar que o assassinato, aos olhos da natureza, era um direito do homem,
embora, surpreendentemente, fosse contra o frio, e anônimo, assassinato através
da pena de morte, devido a esta não ser algo natural, mas mera convenção humana.
SADE E O CONHECIMENTO PROIBIDO
Para Roger Shattuck a Literatura assim como a Genética e a Física atômica Também Teria seus Perigos |
Em seu livro Conhecimento
Proibido, Roger Shattuck (1923 – 2005) toma a obra de Sade como um grande
exemplo dos perigos da literatura, pois assim como outras áreas do
conhecimento, como a física atômica e a manipulação genética, a literatura ao
tocar em assuntos tabus, ou questionar valores humanitários, como propõe exemplarmente
a obra de Sade, toca em noções extremamente perigosas, podendo influenciar
pessoas com suas ideias perigosas. Roger Shattuck chega mesmo a questionar os
livros de Sade entre as obras-primas da literatura universal:
“Deveremos acolher
entre nossos clássicos literários as obras de um autor que violou e inverteu
todos os princípios de justiça e decência humanas desenvolvidos ao longo de 4
mil anos de vida civilizada? Terá o século XX cometido, com relação ao marquês
de Sade, um dos mais monumentais erros de julgamento cultural ao colocar seus
livros entre as obras-primas de nossa literatura?”
E ainda, ao refletir sobre a atitude dos escritores e
editores que se dedicaram a liberar a obra sadiana para publicação: “em nome da liberdade de expressão, somos
capazes de defender práticas como a indecência, a profanação e as expressões de
ódio, enquanto ao mesmo tempo tememos seus efeitos sobre a comunidade”.
Contudo, Roger Shattuck, não defende a censura às obras de
Sade:
“O Ocidente levou
séculos construindo uma cultura que associasse o sexo a noções de ternura e
vida familiar. Explorando as próprias perversões, Sade criou uma pedagogia
alternativa, em que sexo é maldade e assassinato. Para ele, crianças são como
"unhas a ser cortadas". Ainda assim, eu jamais apoiaria qualquer
censura ou destruição de suas obras. Basta combater, com todas as armas da
razão, aqueles que se iludem e pintam como grandes gênios Sade e outros como
ele.”
De modo geral, Roger Shattuck diz que é difícil
explicar a reabilitação de Sade e, ao tentar, a uni as ideias de Nietzsche:
"Atribuo-a mais a
um sinistro desejo de morte pós-nietzschiano, característico do século XX. Esse
desejo de morte busca a libertação absoluta, sabendo que levará à destruição
absoluta - física, moral e espiritual".
Em suma, para Roger Shattuck não apenas a obra literária de
Sade ofereceria perigo, mas toda obra que quebrasse tabus ou questionasse
valores morais fundamentais, como os de certo e errado, bem e mal, etc., o que
inclui a própria obra de Nietzsche, e que faz aproximar as ideias de Shattuck
da defesa feita pelo advogado Clarence Darrow no caso Leopold-Loeb.
Estaria ai a verdadeira explicação para que obras como a de
Sade ou de Nietzsche, tenham exercido influência em assassinos como os descritos
acima, comprovando que a literatura, sim, poderia exercer uma má influência em
seus leitores?
CONTRARIANDO ROGER SHATTUCK
Porém, há um outro modo de ver tal questão. Em seu ensaio,
Eliane Morais aponta algumas, como as de alguns autores que saíram em defesa da
obra de Sade, como a do escritor Octavio Paz, que afirmou:
“Não acredito que haja
autores perigosos; melhor dizendo, o perigo de certos livros não está neles
próprios, mas nas paixões de seus leitores”.
Já Maurice Heine, primeiro biógrafo de Sade, responde a
questão deste modo:
“Todos os livros, uma
vez nas mãos de degenerados, podem ser considerados perigosos. Não é possível
prever que impulso mórbido um degenerado pode receber da mais inocente leitura.
Uma narrativa sobre a vida dos santos, ou outra sobre a paixão de Joana D’arc,
pode perfeitamente levar um desses infelizes a se apoderar de uma irmãzinha e
assá-la viva...”
Henri Miller, mantendo a mesma linha de raciocínio, ao
questionar a proibição de uma de suas obras, argumenta:
“Não é possível
encontrar a obscenidade em qualquer livro, em qualquer quadro, pois ela é
tão-somente uma qualidade do espírito daquele que lê, ou daquele que olha”.
Em suma, para estes autores, contrariando as ideias de Roger
Shattuck, os livros seriam objetos passivos, incapazes, verdadeiramente, de
influenciar alguém, no máximo refletiria apenas a mente do leitor; em outras
palavras, o perigo não estaria nos livros, mas sim na mente de seus leitores.
Para tais autores, o erro na argumentação de Shattuck, seria
a impossibilidade de se prever qual o efeito que um livro teria em seu leitor,
mesmo um livro como o de Sade; isto é, seria impossível provar que um livro que
propõe o mal tenha a maldade como um de seus efeitos em seus leitores, já que
esta poderia muito bem já estar presente na mente de seu leitor; ou que um
livro de amor possa provocar efeitos bons em seus leitores. Ademais, as teses
de Roger Shattuck “não nos autoriza a atribuir maior ou menor eficácia a este
ou aquele livro, tendo em vista apenas seu conteúdo manifesto”. Por exemplo, no
final do Séc. XVIII, o livro Os
Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, foi acusado de incentivar centenas
de suicídios na Europa; o livro conta a estória de Werther, um jovem
apaixonado, que não vendo seu amor correspondido se mata. As ideias de Roger
Shattuck seria incapaz de prever o efeito de tal livro em seus leitores. E
mesmo um livro considerado uma fonte de sabedoria como a Bíblia, já foi
inspiração para atrocidades, como a inquisição, causando mais mal que todos os
outros livros em mãos de pessoas inescrupulosas.
Visto por essa nova ótica, as obras de Nietzsche não teria
nenhuma culpabilidade no caso Leopold-Loeb, anulando totalmente a defesa feita
pelo advogado do caso. A culpa recairia apenas sobre os algozes; a maldade já estaria
presente em suas mentes antes destes conhecerem a obra de Nietzsche.
CRITICANDO A IDEIA DE PASSIVIDADE DOS
LIVROS
Porém a ideia de passividade dos livros, defendida pelos
autores anteriores, tem também suas falhas, pois ela não é honesta para com os
autores.
Se dizemos que os livros de Sade chocam é porque eles
provocam no leitor reações adversas, eles não se mantém como passividade pura,
refletindo, como um espelho, apenas a mente do leitor; eles convidam o leitor a
participar de uma interação mútua; creio que a grande maioria dos autores não
gostariam de ser apenas espelhos de seus leitores, eles gostariam também de
provocar as mais diversas sensações em seus leitores, dividindo suas ideias,
seus sentimentos, seus segredos, sua mais íntima intimidade, porém para tanto é
necessário que o poder de agir lhe seja intrínseco. Negar esta ideia seria
também negar o poder das palavras, das ideias; seria negar o poder de toda a
tradição; seria sermos injustos com autores como Sade e Nietzsche; mas não
necessariamente cairíamos no erro de Roger Shattuck ou do advogado do caso
Leopold-Loeb ao atribui-los uma influência má.
Uma saída para o impasse é dado por George Bataille (1897 –
1962). Para ele, como nos explica bem Eliane Morais, os autores da literatura
considerada perigosa, aquela que Roger Shattuck inclui entre uma das formas de
“conhecimento perigoso”, que manipula a representação do mal, que ultrapassa,
ou mesmo invertem noções de bem e mal, certo e errado, e que tem em Sade o
maior de seus representantes, buscam por meio da literatura, explorar, trazer à
tona, discutir possibilidades que a realidade recusa, por meio de “ uma espécie
de ‘ruptura com o mundo’ e, consequentemente, com as exigências sociais de
ordem ética e moral”, mas que são latentes ao homem. Deste modo, torna-se
necessário a esses autores se desvencilharem dos valores de uma tradição
humanista para poderem melhor repensá-los. Portanto, torna-se imprescindível
que o autor crie certa cumplicidade com o leitor, para juntos explorarem
regiões insuspeitas do homem, alargando o conhecimento deste; conhecimento que
somente a literatura pode fornecer. Para tanto, é necessário que o leitor veja
o mal não como algo exterior a si, como algo estranho ao humano, “mas sim como
uma possibilidade que o concerne”. Neste sentido somente a literatura, para
Bataille, pode, por meio do campo simbólico, transgredir a lei independente de
uma ordem a criar; o que a torna, em certo sentido, perigosa. Porém sendo ela
um conjunto simbólico ela é inorgânica, e sendo inorgânica ela é também
irresponsável: “nada pesa sobre ela. Podendo dizer tudo.”
As concepções de Bataille marcam, pois uma profunda diferença
entre as concepções precedentes; de um lado, com as ideias que concebem o livro
como um objeto totalmente passivo, incapaz de influenciar o leitor, um mero
espelho da personalidade deste, posto que devolve aos livros o poder de mexer,
influenciar o leitor, criando mesmo uma cumplicidade entre ambos; e por outro,
com as ideias de Roger Shattuck, fazendo com que o leitor não seja apenas um
ser passivo, em que as ideias de um livro penetre em sua mente sem nenhuma
crítica ou participação com este. E enquanto para Shattuck o mais importante é
prevenir sobre o perigo destes livros, para Bataille o mais importante é que
estes livros são necessários para se compreender o homem, os abismos mais
profundos de seu ser, alargando assim o conhecimento sobre nossa própria
natureza. O que parece ter sido mesmo uma das intenções de Sade: “a filosofia
deve dizer tudo”; e que sendo verdadeiro, tudo deve dizer, mesmo que seja
perigoso. O que aliais, como já foi demonstrado quanto a literatura, jamais
saberemos o que pode ser, de fato, perigoso, se um livro de Sade e Nietzsche ou
uma triste estória de amor como a de Werther, e muito menos se a maldade está
nos livros de Sade, Nietzsche ou de seus leitores.
Vale lembrar que Nietzsche e Sade jamais mataram alguém.
“Sim, sou um libertino,
eu confesso, concebi tudo o que é possível conceber nesta matéria; mas
seguramente não fiz tudo o que concebi e seguramente não o farei jamais. Sou um
libertino, mas não um criminoso nem um assassino”. (Palavras de Sade à sua
esposa)
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