RESUMO: O texto a seguir
corresponde a uma pequena releitura do ensaio “Os perigos da Literatura: o ‘caso Sade’”, de Eliane Robert Moraes,
contido no livro “Lições de Sade –
ensaios sobre a imaginação libertina”, da mesma autora; porém sendo incluso
também na análise a obra de Nietzsche, devido a semelhança de pensamento,
repercussão, estilo, em que há a mescla de filosofia e literatura, no caso de
Nietzsche, poesia e filosofia à semelhança da obra de Sade.
DOIS CRIMINOSOS E UM LIVRO EM COMUM
Mark Chapman, o homem que assassinou John Lennon, foi
encontrado pela polícia quando lia tranquilamente O Apanhador no Campo de Centeio do escritor americano J.D.Salinger.
John Hincley Jr., o homem que atirou no presidente americano
Ronald Reagan, nos anos 80, para supostamente chamar a atenção da atriz Judie
Foster, também tinha um exemplar do livro de Salinger em casa.
Teria este livro o poder de despertar em pessoas comuns, o
poder da ira, do assassinato?
Coincidência ou não, o texto a seguir tenta dar respostas
para tal questão, examinando dois outros casos de suposta relação entre crimes
e livros.
Em 1924, tem inicio, uma nova forma de assassinato, o
assassinato como teste de ideias filosóficas, e em que a literatura, melhor, a
filosofia de Nietzsche, foi acusada como um dos elementos incentivadores para
tal crime. É o que podemos ver através da história do caso Leopold-Loeb.
Nathan Freudenthal Leopold Jr. e Richard Albert Loeb, ambos,
na época, com 19 e 18 anos, respectivamente, eram dois alunos com inteligência
excepcional, pertencentes a Universidade de Chicago, que decidiram, em 1924,
cometer o crime perfeito. Para tanto, sequestraram e mataram Bobby Franks,
então um garoto de 14 anos.
Leopold e Loeb achavam-se pessoas excepcionais, ideia tirada
de suas façanhas intelectuais: ambos eram superdotados; Leopold falou suas
primeiras palavras com apenas quatro meses de idade; já Loeb era, então, o mais
novo graduado pela Universidade de Michigan. Ambos começaram a praticar
pequenos crimes. Achando-se superiores as penalidades das leis, partiam cada
vez mais para crimes mais audaciosos, até que, para testar suas capacidades,
resolveram cometer o mais grave de todos: o assassinato. Passaram seis meses
arquitetando-o, em seus mínimos detalhes; já haviam escolhido a vítima: o
garoto Bobby Franks, que era vizinho de Loeb, e pertencia a família deste.
Ao serem descobertos pelo crime, Leopold e Loeb revelaram
terem cometido o crime inspirado na filosofia de Nietzsche, em sua ideia de
super-homem.
“Antes do assassinato, Leopold escreveu para Loeb: ‘Um superhomen (...) é, em virtude de certas
qualidades superiores inerentes a ele, isento das leis comuns que regem os
homens. Ele não é responsável por qualquer coisa que ele possa fazer.’”
O Advogado Clarence Darrow em Pé, Tendo ao Seu Lado Direito Leopoldo e Loeb |
Temos, pois, um caso da mais extrema violência, em que o
assassinato é justificado através da ideia de superioridade, e em que o
filósofo alemão Nietzsche é relacionado a este por meio de sua obra; tendo tal
fato sido mesmo usado pelo advogado Clarence Darrow, à época um experiente e
conceituado advogado, como meio de evitar que os réus, Leopold e Loeb, fossem
levados à pena de morte, argumentando:
"Esse terrível
crime era inerente a esses garotos, que se originou no passado … devemos culpar
alguém que tomou os ensinamentos de Nietzsche em sua vida? … devemos realmente
condenar um garoto de 19 anos pela filosofia que foi obrigado a absorver na
faculdade?"
Em outras palavras, o advogado culpa a influência da
filosofia de Nietzsche como a verdadeira causa de tal crime.
Mas antes de continuarmos, e tentarmos responder a pergunta
título, o que diz esse filósofo?
Nietzsche (18844 – 1900) conceitua em seus escritos que a
cultura ocidental fora tomada por uma forma de moral decadente, a moral dos
fracos, em que por meio desta é ensinado ao homem a odiar a vida, a apostar
toda sua vitalidade, sua esperança, em uma vida pós morte, esquecendo a vida
concreta, e de seus deveres para com esta; uma moral da renúncia, que em nome
de um paraíso hipotético, esquecem de cultuar a verdadeira vida. Nietzsche, ao
contrário, crê ser portador de uma mensagem aos fortes, busca por meio desta
acordar estes, convidando-os a construir o paraíso na terra, a construir uma
moral forte, que ao rejeitar o além ilusório, não negue a verdadeira vida, e
que não a torne mais ilusória que aquela. Esta nova moral pertenceria aos
fortes que, ao contrário dos anteriores, afirmarão mesmo sobre os maiores
dissabores da vida, seu querer-viver, sua vontade. A tarefa de transmutar os
valores, de afirmar a vida, será, portanto, tarefa dos fortes, tornando-a cada
vez melhor aos seus descendentes, tomando-a em suas mãos, e imprimindo-a o
poder da mudança positiva; é tarefa dada aos homens que não temem viver, que
não precisam de um consolo de além túmulo para suportar o medo da morte, e
também da vida; e a esses homens Nietzsche chamava de superhomens. São tais
homens, que possuem a vontade de poder mudar, estão além de bem e mal, de certo
e errado, posto que são os verdadeiros criadores da verdadeira moral, já que tais
valores pertencem a uma moral decadente, e que deve ser por isso mesmo derrubados.
SADE E NIETZSCHE
Curiosamente, a filosofia de Nietzsche, em parte, fora
antecipada por outro filósofo, um escritor francês, chamado Marquês de Sade,
que como aquele privilegiava a vontade individual, conceituava a moral de seu
tempo como decadente e que subvertia as noções de bem e mal, certo e errado; e
que, curiosamente, também teve sua filosofia acusada de influência criminosa,
como nos conta o escritor americano Roger Shattuck, em seu livro Conhecimento Proibido, em que afirma que
em dois casos de violência sexual seguida de assassinato acontecidos nas
décadas de 60 e 80, nos Estados Unidos, as ideias de Sade estavam presente,
pois os assassinos não apenas disseram que conheciam Sade, como também tinham
cometidos tais crimes sob a influência de suas ideias.
Dois pensadores com
ideias semelhantes, tendo seus nomes e ideias envolvidos em crimes, teria sido
tudo mera coincidência, ou ambos tiveram participação indireta em tais crimes,
provando que a literatura, sim, pode ser perigosa? Mas antes de responder a
isso, o que dizia Sade?
Sade (1740 – 1814), diferentemente de outros pensadores,
escreveu sua filosofia em meio a romances e novelas pornográficas; o que fazia
seus escritos despertar interesse em um público muito mais amplo que não estava
interessado apenas em filosofia, mas também em pornografia; meio que melhor se
adaptava ao seu pensamento, já que o autor pretendia que os homens retornassem
a cultuar os princípios básicos da vida, ao seus instintos básicos, tido por
ele como superior as outras formas de pensamento. Portanto, o sexo era um
elemento fundamental em seus escritos, pois por meio dele o homem poderia
sentir-se como parte da natureza, fato que a moral estabelecida parecia tentar
esconder do homem, criando uma enorme barreira entre este e aquela, moral e
instinto. E assim como Nietzsche, inverteu noções de bem e mal, certo e errado.
Afirmou que a moral baseava-se em noções contrárias à natureza, sendo,
portanto, falsa. A verdadeira moral deveria partir dos verdadeiros princípios
da natureza, de nossos instintos básicos, e não distorcê-los, e negá-los como
impróprio do homem, como então a moral estabelecida tinha feito com o sexo,
vendo nele não algo natural ao homem e aos outros animais, mas algo impróprio
do mesmo, concebendo-o como antinatural, e recheando-o de sentimentos de culpa
e de pecado. Deste modo, em nome dos instintos, Sade passou a defender tudo
aquilo que a moral proibia, mas que, segundo ele, era garantido pela natureza,
como o assassinato; o roubo; as formas mais extremas de sexo, em que o máximo
de prazer está ligado ao mais extremo egoísmo, implicando mesmo na destruição
do objeto do prazer; o incesto; o homossexualismo; o aborto; etc. Ele chegou mesmo
a afirmar que o assassinato, aos olhos da natureza, era um direito do homem,
embora, surpreendentemente, fosse contra o frio, e anônimo, assassinato através
da pena de morte, devido a esta não ser algo natural, mas mera convenção humana.
SADE E O CONHECIMENTO PROIBIDO
Para Roger Shattuck a Literatura assim como a Genética e a Física atômica Também Teria seus Perigos |
Em seu livro Conhecimento
Proibido, Roger Shattuck (1923 – 2005) toma a obra de Sade como um grande
exemplo dos perigos da literatura, pois assim como outras áreas do
conhecimento, como a física atômica e a manipulação genética, a literatura ao
tocar em assuntos tabus, ou questionar valores humanitários, como propõe exemplarmente
a obra de Sade, toca em noções extremamente perigosas, podendo influenciar
pessoas com suas ideias perigosas. Roger Shattuck chega mesmo a questionar os
livros de Sade entre as obras-primas da literatura universal:
“Deveremos acolher
entre nossos clássicos literários as obras de um autor que violou e inverteu
todos os princípios de justiça e decência humanas desenvolvidos ao longo de 4
mil anos de vida civilizada? Terá o século XX cometido, com relação ao marquês
de Sade, um dos mais monumentais erros de julgamento cultural ao colocar seus
livros entre as obras-primas de nossa literatura?”
E ainda, ao refletir sobre a atitude dos escritores e
editores que se dedicaram a liberar a obra sadiana para publicação: “em nome da liberdade de expressão, somos
capazes de defender práticas como a indecência, a profanação e as expressões de
ódio, enquanto ao mesmo tempo tememos seus efeitos sobre a comunidade”.
Contudo, Roger Shattuck, não defende a censura às obras de
Sade:
“O Ocidente levou
séculos construindo uma cultura que associasse o sexo a noções de ternura e
vida familiar. Explorando as próprias perversões, Sade criou uma pedagogia
alternativa, em que sexo é maldade e assassinato. Para ele, crianças são como
"unhas a ser cortadas". Ainda assim, eu jamais apoiaria qualquer
censura ou destruição de suas obras. Basta combater, com todas as armas da
razão, aqueles que se iludem e pintam como grandes gênios Sade e outros como
ele.”
De modo geral, Roger Shattuck diz que é difícil
explicar a reabilitação de Sade e, ao tentar, a uni as ideias de Nietzsche:
"Atribuo-a mais a
um sinistro desejo de morte pós-nietzschiano, característico do século XX. Esse
desejo de morte busca a libertação absoluta, sabendo que levará à destruição
absoluta - física, moral e espiritual".
Em suma, para Roger Shattuck não apenas a obra literária de
Sade ofereceria perigo, mas toda obra que quebrasse tabus ou questionasse
valores morais fundamentais, como os de certo e errado, bem e mal, etc., o que
inclui a própria obra de Nietzsche, e que faz aproximar as ideias de Shattuck
da defesa feita pelo advogado Clarence Darrow no caso Leopold-Loeb.
Estaria ai a verdadeira explicação para que obras como a de
Sade ou de Nietzsche, tenham exercido influência em assassinos como os descritos
acima, comprovando que a literatura, sim, poderia exercer uma má influência em
seus leitores?
CONTRARIANDO ROGER SHATTUCK
Porém, há um outro modo de ver tal questão. Em seu ensaio,
Eliane Morais aponta algumas, como as de alguns autores que saíram em defesa da
obra de Sade, como a do escritor Octavio Paz, que afirmou:
“Não acredito que haja
autores perigosos; melhor dizendo, o perigo de certos livros não está neles
próprios, mas nas paixões de seus leitores”.
Já Maurice Heine, primeiro biógrafo de Sade, responde a
questão deste modo:
“Todos os livros, uma
vez nas mãos de degenerados, podem ser considerados perigosos. Não é possível
prever que impulso mórbido um degenerado pode receber da mais inocente leitura.
Uma narrativa sobre a vida dos santos, ou outra sobre a paixão de Joana D’arc,
pode perfeitamente levar um desses infelizes a se apoderar de uma irmãzinha e
assá-la viva...”
Henri Miller, mantendo a mesma linha de raciocínio, ao
questionar a proibição de uma de suas obras, argumenta:
“Não é possível
encontrar a obscenidade em qualquer livro, em qualquer quadro, pois ela é
tão-somente uma qualidade do espírito daquele que lê, ou daquele que olha”.
Em suma, para estes autores, contrariando as ideias de Roger
Shattuck, os livros seriam objetos passivos, incapazes, verdadeiramente, de
influenciar alguém, no máximo refletiria apenas a mente do leitor; em outras
palavras, o perigo não estaria nos livros, mas sim na mente de seus leitores.
Para tais autores, o erro na argumentação de Shattuck, seria
a impossibilidade de se prever qual o efeito que um livro teria em seu leitor,
mesmo um livro como o de Sade; isto é, seria impossível provar que um livro que
propõe o mal tenha a maldade como um de seus efeitos em seus leitores, já que
esta poderia muito bem já estar presente na mente de seu leitor; ou que um
livro de amor possa provocar efeitos bons em seus leitores. Ademais, as teses
de Roger Shattuck “não nos autoriza a atribuir maior ou menor eficácia a este
ou aquele livro, tendo em vista apenas seu conteúdo manifesto”. Por exemplo, no
final do Séc. XVIII, o livro Os
Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, foi acusado de incentivar centenas
de suicídios na Europa; o livro conta a estória de Werther, um jovem
apaixonado, que não vendo seu amor correspondido se mata. As ideias de Roger
Shattuck seria incapaz de prever o efeito de tal livro em seus leitores. E
mesmo um livro considerado uma fonte de sabedoria como a Bíblia, já foi
inspiração para atrocidades, como a inquisição, causando mais mal que todos os
outros livros em mãos de pessoas inescrupulosas.
Visto por essa nova ótica, as obras de Nietzsche não teria
nenhuma culpabilidade no caso Leopold-Loeb, anulando totalmente a defesa feita
pelo advogado do caso. A culpa recairia apenas sobre os algozes; a maldade já estaria
presente em suas mentes antes destes conhecerem a obra de Nietzsche.
CRITICANDO A IDEIA DE PASSIVIDADE DOS
LIVROS
Porém a ideia de passividade dos livros, defendida pelos
autores anteriores, tem também suas falhas, pois ela não é honesta para com os
autores.
Se dizemos que os livros de Sade chocam é porque eles
provocam no leitor reações adversas, eles não se mantém como passividade pura,
refletindo, como um espelho, apenas a mente do leitor; eles convidam o leitor a
participar de uma interação mútua; creio que a grande maioria dos autores não
gostariam de ser apenas espelhos de seus leitores, eles gostariam também de
provocar as mais diversas sensações em seus leitores, dividindo suas ideias,
seus sentimentos, seus segredos, sua mais íntima intimidade, porém para tanto é
necessário que o poder de agir lhe seja intrínseco. Negar esta ideia seria
também negar o poder das palavras, das ideias; seria negar o poder de toda a
tradição; seria sermos injustos com autores como Sade e Nietzsche; mas não
necessariamente cairíamos no erro de Roger Shattuck ou do advogado do caso
Leopold-Loeb ao atribui-los uma influência má.
Uma saída para o impasse é dado por George Bataille (1897 –
1962). Para ele, como nos explica bem Eliane Morais, os autores da literatura
considerada perigosa, aquela que Roger Shattuck inclui entre uma das formas de
“conhecimento perigoso”, que manipula a representação do mal, que ultrapassa,
ou mesmo invertem noções de bem e mal, certo e errado, e que tem em Sade o
maior de seus representantes, buscam por meio da literatura, explorar, trazer à
tona, discutir possibilidades que a realidade recusa, por meio de “ uma espécie
de ‘ruptura com o mundo’ e, consequentemente, com as exigências sociais de
ordem ética e moral”, mas que são latentes ao homem. Deste modo, torna-se
necessário a esses autores se desvencilharem dos valores de uma tradição
humanista para poderem melhor repensá-los. Portanto, torna-se imprescindível
que o autor crie certa cumplicidade com o leitor, para juntos explorarem
regiões insuspeitas do homem, alargando o conhecimento deste; conhecimento que
somente a literatura pode fornecer. Para tanto, é necessário que o leitor veja
o mal não como algo exterior a si, como algo estranho ao humano, “mas sim como
uma possibilidade que o concerne”. Neste sentido somente a literatura, para
Bataille, pode, por meio do campo simbólico, transgredir a lei independente de
uma ordem a criar; o que a torna, em certo sentido, perigosa. Porém sendo ela
um conjunto simbólico ela é inorgânica, e sendo inorgânica ela é também
irresponsável: “nada pesa sobre ela. Podendo dizer tudo.”
As concepções de Bataille marcam, pois uma profunda diferença
entre as concepções precedentes; de um lado, com as ideias que concebem o livro
como um objeto totalmente passivo, incapaz de influenciar o leitor, um mero
espelho da personalidade deste, posto que devolve aos livros o poder de mexer,
influenciar o leitor, criando mesmo uma cumplicidade entre ambos; e por outro,
com as ideias de Roger Shattuck, fazendo com que o leitor não seja apenas um
ser passivo, em que as ideias de um livro penetre em sua mente sem nenhuma
crítica ou participação com este. E enquanto para Shattuck o mais importante é
prevenir sobre o perigo destes livros, para Bataille o mais importante é que
estes livros são necessários para se compreender o homem, os abismos mais
profundos de seu ser, alargando assim o conhecimento sobre nossa própria
natureza. O que parece ter sido mesmo uma das intenções de Sade: “a filosofia
deve dizer tudo”; e que sendo verdadeiro, tudo deve dizer, mesmo que seja
perigoso. O que aliais, como já foi demonstrado quanto a literatura, jamais
saberemos o que pode ser, de fato, perigoso, se um livro de Sade e Nietzsche ou
uma triste estória de amor como a de Werther, e muito menos se a maldade está
nos livros de Sade, Nietzsche ou de seus leitores.
Vale lembrar que Nietzsche e Sade jamais mataram alguém.
“Sim, sou um libertino,
eu confesso, concebi tudo o que é possível conceber nesta matéria; mas
seguramente não fiz tudo o que concebi e seguramente não o farei jamais. Sou um
libertino, mas não um criminoso nem um assassino”. (Palavras de Sade à sua
esposa)
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